Entrevista: «Existe uma relação entre a psoríase e a saúde mental da qual é preciso falar», Miguel Silva, Centro Hospitalar e Universitário de São João

Saiba o que é esta condição, como se desenvolve e de que forma afeta a vida dos doentes.

A saúde mental é cada vez mais reconhecida como sendo muito significativa na vida dos doentes com psoríase. Além do impacto físico provocado pela manifestação visível da doença na pele, muitos doentes enfrentam quadros de depressão e distúrbios de ansiedade que afetam significativamente a sua qualidade de vida. Sobre este tema falámos com Miguel Silva, médico dermatologista do Centro Hospitalar e Universitário de São João.

Por Sandra M. Pinto

De acordo com a Federação Internacional das Associações de Psoríase (IFPA, na sigla em inglês), uma em cada quatro pessoas que vive com doença psoriática apresenta sinais de depressão, e cerca de 48% têm distúrbios de ansiedade1. Em Portugal, cerca de 18% dos doentes com psoríase vive com depressão e distúrbios de ansiedade, refere o estudo epidemiológico levado a cabo pelo Grupo Português de Psoríase da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia (SPDV).

O que é a psoríase?
A psoríase é uma doença crónica, de caráter inflamatório, imunomediada e de ocorrência universal. Apesar da etiologia da doença não ser totalmente conhecida, reconhece-se o papel da hereditariedade, dos fatores ambientais e do sistema imunológico no desenvolvimento desta patologia.

De que forma se manifesta e quais os principais sintomas?
Esta doença pode-se manifestar de várias formas. A variante mais comum, a psoríase em placas, manifesta-se por placas vermelhas e descamativas, cobertas por escamas esbranquiçadas a prateadas, envolvendo preferencialmente os cotovelos, joelhos, região lombo-sagrada e couro cabeludo, associando-se frequentemente a prurido e escoriações resultantes do ato de coçar. Existem, no entanto, outras formas de psoríase: palmoplantar, gutata (ou em gotas que se caracteriza por pequenas manchas vermelhas bem individualizadas), inversa (ocorre sobretudo nas pregas da pele), pustulosa, eritrodérmica (inflamação atingindo mais de 90% da superfície corporal) e artropática (artrite psoriática). Podíamos falar de psoríases, e não apenas na psoríase.

Há tratamento?
Atualmente, dispomos de muitos tratamentos para a psoríase. Conforme a gravidade e o tipo de lesões, podemos escolher terapêuticas tópicas (locais), fototerapia (exposição a radiação ultravioleta, em meio hospitalar), medicamentos sistémicos, orais ou injetáveis, que incluem retinóides, imunomoduladores e imunossupressores. Casos graves e selecionados podem recorrer a medicamentes biológicos. Apesar de sujeitos a protocolos de prescrição específicos (pelo seu custo superior) são opções extremamente eficazes e seguras, desprovidas de toxicidade cumulativa e específica de órgão, que bloqueiam de forma seletiva as células e mediadores inflamatórios envolvidos na patogénese da psoríase garantindo grande probabilidade de controlo da doença. Constituem, à data, a maior revolução no tratamento da psoríase.

Que cuidados devem os pacientes com psoríase ter na sua vida diária?
Além, claro, do tratamento diário da pele, um estilo de vida saudável, com um regime alimentar adequado, exercício físico regular, abstinência de consumo de tabaco ou bebidas alcoólicas, pode ajudar no combate à psoríase. A gestão destes fatores comportamentais, bem como o cumprimento rigoroso do tratamento instituído, são fundamentais. Por fim, o doente poderá sempre recorrer ao seu dermatologista para dúvidas que possam surgir, quer sejam relativas à doença, bem como ao tratamento. É numa relação médico-doente sólida que reside o sucesso do controlo da psoríase.

Quais os números desta doença relativamente ao nosso país?
A prevalência da psoríase na população ocidental é de aproximadamente 2%, afetando de igual forma homens e mulheres. Um estudo recente representativo da população portuguesa, realizado pelo Grupo Português de Psoríase da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e Venereologia (SPDV) concluiu que a prevalência estimada da psoríase no nosso país é de 4,4%, sendo, portanto, superior ao previamente descrito, estimando-se que atinja mais de 400 mil portugueses.

Na sua opinião é dado o devido acompanhamento a estas pessoas?
A psoríase é uma doença subdiagnosticada e Portugal não é exceção. Estudos demonstram que até um quarto dos doentes com psoríase não estão diagnosticados por um médico, apesar de apresentarem critérios clínicos desta doença inflamatória da pele. Dificuldades de acesso ao sistema de saúde, tanto pelas longas listas de espera originadas pelo baixo número de serviços hospitalares com a valência de dermatologia, como ao baixo número de dermatologistas nestes serviços, mas, também, o desconhecimento e subvalorização da doença, tanto por doentes como pela sociedade, acabam por diminuir a procura de cuidados de saúde pelos próprios doentes.

 Até que ponto impacto físico provocado pela manifestação visível da doença na pele afeta os doentes?
Sendo, uma doença crónica que afeta predominantemente a pele, a psoríase fica à vista de todos. Estas lesões podem ser causa de comichão, ardor, dor na pele e nas articulações, associando-se a constrangimento sexual, embaraço social ou dificuldades profissionais, provocando um grave impacto na qualidade de vida dos doentes.

De que forma podem eles encarar esta situação perante os outros?
Os doentes acabam por evitar as situações em que expõem a pele, como ir a praias ou piscinas, e, por vezes, até evitam desenvolver relações sentimentais por receio da intimidade. Até a escolha do vestuário é condicionada pela doença, de forma a cobrir o máximo de pele possível. Isso limita a sua vida emocional e social e cria isolamento e depressão. Metade dos doentes com psoríase sente-se constrangido nas relações pessoais, segundo dados da PSOPortugal (Associação Portuguesa da Psoríase). Dada a sua exposição, é compreensível que os doentes com psoríase sintam baixa autoestima, estigmatização e tenham um impacto negativo na sua envolvência familiar, laboral e social. O isolamento social resultante é, em si, um fator agravante da ansiedade e depressão, podendo levar o doente a um ciclo vicioso, no qual a ajuda médica especializada é fundamental.

E mentalmente, há algum impacto?
Existe uma relação entre a psoríase e a saúde mental. Por um lado, sabemos que o stress, ansiedade e depressão podem agravar uma psoríase previamente diagnosticada e, até mesmo, “despertar” uma psoríase num doente com predisposição para a doença. Por outro lado, doentes com psoríase já diagnosticada têm maior probabilidade de desenvolverem ansiedade e depressão. Estudos mostram que a prevalência de depressão em doentes com psoríase varia entre 10 e 30%. Também a alexitimia – a dificuldade em reconhecer e descrever emoções – foi associada à psoríase, com taxas de prevalência de até 1 em cada 3 doentes.

De que forma se revelam esses quadros de depressão e distúrbios de ansiedade?
A nível psicoemocional, podem ser notórios sintomas de ansiedade, raiva, frustração, baixa autoestima, inibição, constrangimento, tristeza, solidão, depressão e também maior frequência de ideação suicida.

Como deve ser feito o acompanhamento psicológico destes doentes? Deve existir um tratamento conjunto entre as duas especialidades médicas?
Existe uma relação bidirecional entre a psoríase e a saúde mental: a melhoria da psoríase resulta em melhoria da saúde mental do doente; e o tratamento bem-sucedido da doença mental resultará potencialmente em benefício na autoestima e bem-estar do doente e na forma como o doente lida com a doença. Consequentemente, o tratamento do doente com psoríase deve ser holístico e multidisciplinar. Se por um lado a colaboração com especialidades como a reumatologia já é uma prática recorrente em doentes com artrite psoriática, por outro lado, a gestão da saúde mental do doente, nomeadamente em parceria com a psiquiatria e psicologia, deve também ser uma prioridade e preocupação.

Até que ponto é importante a prevenção e o diagnóstico da doença mental nestas pessoas?
Dada a sua frequência, é importante reconhecer os problemas de saúde mental nos doentes com psoríase. À semelhança de muitas outras doenças, o diagnóstico precoce da psoríase e de eventual doença mental, é fundamental para um tratamento bem-sucedido de ambas.

É de fato possível estas pessoas com psoríase conseguirem alcançar um bem-estar geral, a nível físico, mental e social?
No sentido estrito da palavra, não existe cura para a psoríase. Contudo, existem tratamentos disponíveis que possibilitam uma resolução de grande parte (ou até de todas) as manifestações psoriáticas permitindo melhorar a qualidade de vida dos doentes. No entanto, o acesso a estas terapêuticas é ainda limitado.

O tema de 2022 para o Dia Mundial da Psoríase, que se celebrou a 29 de outubro, foi “Unidos Para Atuar”. De que forma se desdobra na realidade este tema?
As manifestações cutâneas da psoríase são apenas a ponta do iceberg. Há um processo inflamatório sistémico, dos vasos, das articulações e de alguns órgãos o que torna a psoríase um fator de risco independente para comorbilidades cardiometabólicas (diabetes mellitus, resistência à insulina, obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia, síndrome metabólica) e para o aparecimento de aterosclerose precoce, o que se traduz num risco superior de eventos cardiovasculares (enfarte agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral), comparativamente à população geral. Para além disso os doentes com psoríase têm uma maior incidência de comorbilidades psiquiátricas, artrite psoriática, doença inflamatória intestinal, uveíte (inflamação ocular) e esteatose hepática não alcoólica, além da maior prevalência de hábitos tabágicos e alcoólicos. Uma abordagem multidisciplinar do doente psoriático é fundamental.

Na sua opinião tem vindo a assistir-se a uma diminuição do estigma associado à psoríase ao longo dos anos?
Apesar de toda a informação disponível, quem sofre desta doença ainda refere de forma frequente que a psoríase constitui uma limitação à sua vida social, profissional e sexual. As dermatoses crónicas acarretam consigo um estigma importante, importando sublinhar que a psoríase não é contagiosa e tem tratamento. Em pleno século XXI, a discriminação face a quem sofre de psoríase não é aceitável.

Está a sociedade sensibilizada para a situação destas pessoas?
Quanto à população geral, as várias campanhas de sensibilização para a psoríase têm chamado a atenção para a doença e seus tratamentos pelo que sem dúvida que temos progredido no sentido de trazer maior visibilidade a este problema. No entanto, continua e existir desvalorização dos sinais e sintomas por parte da sociedade e até dos protagonistas dos cuidados de saúde, o que, por vezes, pode gerar frustração e insatisfação entre os pacientes. Disseminar informação científica válida e incentivar a formação dos médicos das diferentes especialidades é fundamental.

E a nível governamental existe esse sensibilização e preocupação?
A otimização do tratamento desta doença exige um modelo centrado no doente. O melhor tratamento é o tratamento personalizado que melhor se adeque a cada caso e a cada doente. Existem cada vez mais dificuldades de acesso à medicação causadas por restrições impostas por alguns hospitais baseados em decretos de lei generalistas e não adaptados às necessidades individuais dos doentes, com claras discrepâncias entre as diferentes regiões do país. Os decisores devem assegurar que os doentes têm acesso aos cuidados médicos profissionais e aos tratamentos de forma universal. No campo das terapêuticas biológicas, que são uma opção sustentável, ainda há muito para fazer para os tornar mais acessíveis. É importante que os governantes tenham em consideração o custo-benefício das opções de tratamento.

Gostava que deixasse aqui uma palavra aos profissionais de saúde que lidam com estas pessoas, mas também uma palavra a quem sofre de psoríase.
Se tem psoríase, procure ajuda junto do seu dermatologista e exponha o que sente, as suas preocupações, receios e anseios. Saiba que não está sozinho e que, felizmente, hoje dispomos de tratamentos muito eficazes para a psoríase. Não tem de sofrer sozinho.

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