Em “Os Soldados Fantasma – A história ignorada dos portugueses que combateram os exércitos nazis em França”, o jornalista José Manuel Barata-Feyo recupera a história dos voluntários portugueses que integraram o exército francês depois da declaração de guerra da França à Alemanha, a 3 de setembro de 1939. Nos arquivos franceses, para além do nome, local e data de nascimento, o historial e o destino desses portugueses esfumou-se, como se nunca tivessem existido enquanto soldados – soldados que morreram em combate, que foram feitos prisioneiros pelos alemães ou que sobreviveram.
“Os Soldados Fantasma – A história ignorada dos portugueses que combateram os exércitos nazis em França” assenta numa investigação inédita com documentos exclusivos. De acordo com o seu autor, este é o contributo possível para que se faça alguma justiça à memória dos portugueses que nesses tempos de trevas e de barbárie se sacrificaram, maioritariamente até à morte, pela liberdade – da França, da Europa e a nossa própria.
É um dos mais prestigiados jornalistas portugueses. Como surgiu o jornalismo na sua vida?
Desde miúdo que tenho uma grande paixão pela escrita. Sendo um aluno medíocre, no liceu, a língua e a literatura portuguesas sempre foram uma das raras excepções a essa regra. Por outro lado, havia na minha família jornalistas e escritores que eu muito admirava e que, certamente, influenciaram as minhas escolhas profissionais.
Que memórias guarda desses tempos de Paris?
Paris foi o meu refúgio quando me exilei, clandestinamente, por razões políticas. O facto é que fui o mais jovem ou, pelo menos, um dos mais jovens portugueses a ser detidos pela PIDE – a primeira vez tinha 12 anos… Quando lá cheguei, as coisas não foram fáceis. Para começar, era preciso comer e dormir… Por outro lado, estava muito presente a mágoa de viver longe da minha família, dos meus amigos, da minha terra e da minha língua, o português – aquilo a que nós chamamos saudade. Depois, acabei por me integrar, que remédio. Não havia perspectivas de que a ditadura caísse e de que eu pudesse regressar a Portugal. Foi em Paris que fiz amigos, franceses, na faculdade e no jornalismo. Nunca mais deixámos de nos ver, mesmo depois de eu ter regressado a Portugal, em 1980. Quase todos compraram uma casita na aldeia perto da qual eu agora vivo e, com o andar dos anos e a chegada da reforma, agora passamos o tempo colados uns aos outros. É uma bela amizade e uma das poucas coisas positivas que “devo” à ditadura…
No ano em que se celebram 50 anos de 25 de abril, como observa o Portugal de hoje? E, com tantos anos de experiência, de que forma olha para a profissão hoje em dia?
Portugal, visto com os olhos de hoje e à luz das esperanças que me suscitou o 25 de Abril, é uma dolorosa desilusão. Os jovens emigram, um terço já partiu para o estrangeiro, e não é certo que os meus três filhos também não sigam esse caminho. Sim, é uma dolorosa desilusão. Ao contrário da Europa do pós-guerra ou da Espanha pós Franco, Portugal não tinha quadros políticos à altura dos desafios que se colocavam ao país. É certo que vivemos em democracia e que a liberdade é o meu bem mais precioso. Mas a verdade é que falhámos a descolonização e que, no que respeita ao desenvolvimento – o terceiro dos três “D” do 25 de Abril – andamos a caminhar para a cauda da Europa. É indubitável que na Constituinte de 1976 estavam os melhores portugueses. O problema foi a inexperiência dos governantes nos anos que se seguiram. E, pior do que isso, foi a substituição deles pela “partidocracia” em que vivemos, feita de políticos de pouca qualidade que gatinham pelas juventudes partidárias, que se apropriaram do regime democrático, tantas vezes em benefício próprio, e que são incapazes de ter um projecto de médio e de longo prazo para Portugal. Daqui por vinte ou cinquenta anos, estaremos onde outros quiserem que estejamos.
Quanto ao jornalismo, estamos a sofrer as consequências da promoção que fizemos desse esgoto anónimo que são as redes sociais, com as quais temos agora de concorrer – acham os jornalistas. A consequência imediata e visível desse facto foi a substituição do rigor e da isenção por aquilo a que chamo um “jornalismo aproximativo”, refém de uma velocidade que não rima com veracidade É ele que afasta os cidadãos dos jornalistas. De advogados do cidadão passámos, tantas vezes!, a vendedores de banha da cobra no quais a opinião pública já não confia. E isso é dramático, porque sem uma Imprensa livre, responsável e credível é a própria democracia que fica comprometida.
Fez reportagens impactantes, qual a que mais o marcou?
Não sei. Mas algumas marcaram-me, física e psicologicamente. Penso, sobretudo, nas que implicaram a cobertura de guerras, longe dos hotéis e das cidades, partilhando as marchas, a fome, o frio, o medo e a angústia dos combatentes quando chegavam à frente de combate e à linha de fogo. Mas há também outras como, por exemplo, a reportagem sobre a beleza sufocante das gravuras e das pinturas rupestres do Tassili N’ajjer, no coração do deserto do Sahara. Foi com esse trabalho que recebi o prémio Frantz Fanon, da URTNA, o primeiro prémio internacional de jornalismo ganho pela RTP, em 1982. O mundo não é só feito de horrores e de guerras; é também feito de muitas coisas belas que nos ensinam que a vida vale a pena ser vivida.
Quando faz investigação sente-se mais um jornalista ou um explorador?
Sinto-me apenas um jornalista a fazer o seu trabalho, com rigor e humildade.
Edita agora “Os Soldados Fantasma – A história ignorada dos portugueses que combateram os exércitos nazis em França”. Como teve conhecimento da existência de militares portugueses a lutar em França contra os nazis durante a II Guerra Mundial?
A ideia surgiu na sequência da investigação que fiz, entre 2016 e 2018, sobre os cerca de quatrocentos portugueses e portuguesas que lutaram clandestinamente contra os nazis durante a ocupação da França, entre 1940 e 1944. Foi esse trabalho que deu origem à publicação da obra “A Sombra dos Heróis”. Acontece que, durante essa investigação realizada nos arquivos históricos franceses, encontrei uma referência a cerca de mil portugueses, civis, que se tinham alistado como voluntários para o exército francês, em 1939.
De que forma surgiu a ideia de fazer este livro?
Tratava-se da participação de portugueses em acontecimentos ocorridos na mesma cena histórica – a II Guerra Mundial e o combate contra a Alemanha nazi. Tendo tratado de uns, os resistentes civis, não fazia sentido esquecer os outros, os soldados voluntários.
E qual o seu objetivo, a sua finalidade?
Arrancar ao esquecimento esses portugueses. Eles eram ignorados de tudo e de todos, tanto em França como em Portugal. De certo modo, achei que era minha obrigação deixar um registo do seu combate e do seu sacrifício, tantas vezes levado até à morte.
Perante as novas gerações este regatar da memória é cada mais importante?
Perante todas as gerações! E agora, mais do que nunca, quando algumas correntes ideológicas, da extrema esquerda e da extrema direita, pretendem reescrever a História. A célebre frase de Welles no Big Brother (refiro-me à obra, é claro, e não a essa degradação que é o programa televisivo) nunca foi de maior actualidade: “Quem comanda o passado, comanda o futuro”. Mao Tsé Tung e os seus sucedâneos maoistas perceberam e percebem isso muito bem. Com os resultados e as dezenas de milhões de mortos que daí resultaram. Sim, penso que temos a obrigação de cuidar atentamente da memória para que nenhuma ideologia totalitária se aproprie dela e, do mesmo passo, do nosso futuro colectivo.
Mais do que um livro, esta obra é documento histórico. Concorda?
Sim, sem dúvida. Mas as duas coisas não são incompatíveis, antes complementares. Podia dar-lhe muitos exemplos de que assim é.
Ao nível da investigação, como foi o processo?
Muito, mas mesmo muito complicado. Por razões desconhecidas, os arquivos históricos franceses perderam ou destruíram quase toda a informação sobre os voluntários estrangeiros que combateram os nazis integrados nos exércitos da França. É inexplicável, mas é a realidade.
Quanto tempo demorou a investigação?
Três anos.
Sempre em França? Em que locais?
Em França e em Portugal. Em França, foram consultados os arquivos do castelo de Vincennes, os do memorial da Shoah, em Paris, os de Caen, na Normandia e ainda os de Pau, no sudoeste da França. Em Portugal, esbarrei literalmente com a total indiferença e desinteresse pelo tema das juntas de freguesia dos locais onde nasceram os voluntários portugueses – não contactei todas, mas contactei muitas.
Estes homens eram todos voluntários? O que é que os movia?
Foram todos voluntários. Quanto às suas motivações, podemos apenas especular. Alguns fizeram-no por convicção política e ideológica, outros por solidariedade para com os franceses e outros ainda por terem a perspectiva de assim poderem obter a nacionalidade francesa no fim da guerra.
Quantos eram eles? E eram de todo o território nacional?
Mil, em números redondos. A maioria era oriunda do Norte e do Centro de Portugal, as regiões de onde tradicionalmente se emigra. Quase não há alentejanos, mas, em contrapartida, há um número apreciável de algarvios.
O que eram os “regimentos de cordel” e por que tinham essa designação?
Os voluntários estrangeiros foram integrados em três Régiments de Marche des Volontaires Étrangers, criados para o efeito a partir de 3 de Setembro de 1939, data da declaração de guerra da França à Alemanha. Esses regimentos estavam tão mal-armados e equipados que os soldados tinham de atar ou segurar o equipamento e as armas com cordéis. Os alemães aperceberam-se disso e, nas suas emissões de propaganda, na rádio, começaram a chamar-lhes “regimentos de cordel”.
Mas eram os mais medalhados, certo? Isso diz muito desses homens…
Sim. No fim da guerra, o general Albert Brothier constatou que das 13 citações na Ordem do Exército, por mérito militar, concedidas a toda a infantaria francesa que entrou em combate – um milhão de homens – 4 foram atribuídas a regimentos estrangeiros ou seja, a menos de vinte mil voluntários.
Refere que foram destruídas ou perdidas informações sobre os militares estrangeiros que lutaram ao lado dos franceses contra os nazis. Na sua opinião qual o motivo para tal?
Não sei. E os responsáveis pelos arquivos históricos franceses também não. Mas devo confessar-lhe que, graças à publicação de “Os Soldados Fantasma” e ao facto de o livro também estar a ser lido, em França, encontrei uma pista que talvez me permita desvendar esse mistério e saber um pouco mais sobre esses portugueses…
E no caso da Legião Estrangeira, pode o motivo desse desaparecimento ser o mesmo?
Nada desapareceu da Legião Estrangeira francesa. As informações, a priori, estão lá, nos arquivos da Legião. O problema é que a sua política de privacidade em relação ao passado dos legionários não permite que se aceda a esses registos e à informação que eles contêm.
Refere uma investigação “de baixo para cima”, pode explicar?
Em condições normais, a investigação seria feita com base em contactos que estabeleceria com os descendentes dos voluntários, em França. O problema é que, nos arquivos históricos, consta apenas o nome, o local e a data de nascimento desses voluntários, em Portugal. E nada consta sobre o local onde viviam e trabalhavam em França, nem o nome e a morada da pessoa a prevenir em caso de necessidade. Assim sendo, é impossível chegar aos descendentes dos voluntários através do seu nome de família e/ou da mairie – a junta de freguesia – do local onde viviam e onde, talvez, ainda vivam os seus descendentes.
A única solução para lá chegar, portanto, era através do local de nascimento, em Portugal e, a partir de aí, tentar saber junto de eventuais familiares para que sítio de França tinha emigrado o futuro voluntário. Ora, como já vimos, a quase totalidade das juntas de freguesia que contactei não manifestaram qualquer interesse pelo assunto ou, pior ainda, não quiseram ajudar nas pesquisas. No fim de contas, consegui localizar e falar apenas com os descendentes de meia dúzia de voluntários portugueses. É pouco, é pobre e é pena.
Se não fosse este seu livro, nós portugueses não teríamos conhecimento desta realidade. Na sua opinião, qual o motivo na base de, por parte das autoridades portuguesas, não ter havido uma divulgação pública deste tema? Ou estamos errados?
Até à publicação, em 2018, do livro “A Sombra dos Heróis”, ninguém sabia em Portugal que tantos portugueses e portuguesas tinham combatido contra os nazis, em França. Por outro lado, em França, ninguém se tinha dado ao trabalho de fazer um levantamento do conjunto dos resistentes portugueses e, por conseguinte, ignorava-se a importância que eles tinham tido na luta contra os nazis. E essa importância foi grande, não só pelas acções concretas, militares e de espionagem, em que eles participaram, mas também porque, proporcionalmente, houve mais portugueses que franceses a combater os nazis durante a ocupação.
Mas, pelo que sei, estão neste momento várias iniciativas em curso, em França, no sentido de haver um reconhecimento público e oficial do papel então desempenhado pelos portugueses.
Em contrapartida, do lado do governo português, não houve, até agora, uma única palavra ou referência a esses combatentes pela liberdade. Como já não podem invocar ignorância na matéria, não sei que pensar. Tanto mais que, nos 50 anos de 25 de Abril, não será fácil encontrar, em Portugal, um grupo tão grande e heróico de portugueses que tenha resistido, de armas na mão, às ideologias ditatoriais que marcaram o século XX, e que tanto se tenha sacrificado, com frequência até à morte, pela liberdade de todos nós.
Quanto aos mil portugueses que combateram os nazis como voluntários para o exército francês, é cedo para que haja uma reacção. Afinal, o livro “Os soldados fantasma” acabou de sair. Mas agora já se sabe quem eles são e qual o destino reservado à maioria deles: de meados de Maio a meados de Junho de 1940, no norte da França, morreram, em combate, entre 600 a 700 portugueses. Talvez eles venham a merecer uma palavra, uma pequena referência, quem sabe. Mas eu não acredito. Cada vez me parece mais que existe em Portugal um grupo que considera ter o monopólio da luta pela liberdade, do qual estão excluídos os que, de facto, combateram os nazis de armas na mão. Mas tenho a certeza que a História se encarregará, lá mais adiante, de pôr os pontos nos iii e de fazer justiça. Finalmente.