Assinala-se hoje o dia da Síndrome de Angelman, uma síndrome que afeta gravemente o desenvolvimento psico-motor e intelectual dos indivíduos afetados.
A Síndrome de Angelman é daquelas que desafia a nossa falsa esperança de que uma criança que nasce saudável (“com os dedinhos todos”) será saudável. Como muitas doenças que afetam o desenvolvimento, durante a gravidez não existem quaisquer alterações ecográficas, ao nascimento não existem malformações identificáveis e os diversos rastreios universais realizados durante estes dois períodos não excluem ou colocam a suspeita da doença.
Os sintomas começam a surgir durante o primeiro ano e no fim do segundo, é possível a suspeita clínica da doença. O adquirir da marcha autónoma que não aconteceu até aos 2 anos, as primeiras palavras que não foram aprendidas (atraso no desenvolvimento psico-motor), a obsessão por alguns objectos, a instabilidade, espasmos e tremor que dificultam o seu manuseamento, um riso desasjustado e frequente (alterações comportamentais), o diâmetro da cabeça (perímetro cefálico) que não acompanha o resto do crescimento (microcefalia adquirida). Raramente estas crianças adquirem linguagem e algumas nunca chegam a adquirir a marcha. É frequente a epilepsia (diagnosticada nos primeiros anos de vida), a hiperexcitabilidade, o estrabismo, as dificuldades alimentares e alterações dos padrões de sono.
Infelizmente não existe nenhum tratamento curativo ou modificador da doença atualmente. O tratamento é direcionado aos sintomas, como educação e tratamento da epilepsia, terapias várias (fala, ocupacional, fisioterapia); e a outros possíveis, se existentes, como refluxo gastro-esofágico, obstipação, estrabismo, escoliose.
Na maioria dos casos a Síndrome de Angelman acontece de novo, um erro esporádico com muito baixo risco de se repetir na mesma família. Mas existem casos com risco de recorrência e é importante o diagnóstico genético, para o correto aconselhamento da família.
A etiologia genética desta doença é complexa, porque tem uma particularidade a que se chama imprinting, um fenómeno que acontece em cerca de uma dezena de regiões do nosso código genético.
Para que possam perceber este fenómeno e os riscos envolvidos, irei recuar um pouco no conhecimento.
Lembrando resumidamente o nosso código genético – o ácido desoxirribonucleico (ADN) – ele está arrumado em 46 cromossomas (23 pares, um cromossoma de cada par, oriundo de cada progenitor), como se fossem umas enciclopédias guardadas nas nossas células, com instruções. As instruções que percebemos melhor são os genes – capítulos que instruem a formação de proteínas. A forma como são lidos (e as proteínas expressas) é sujeita a múltiplas formas de controlo. Uma delas é a metilação do ADN, que “desliga” a sua leitura e que pode acontecer sob a forma de imprinting. O imprinting compreende metilações determinadas numa fase precoce da gravidez e que ditam que determinadas regiões do nosso código só sejam lidas se vêm da mãe e outras do pai. Não se sabe o porquê destas
impressões, mas coloca-se a hipótese de ser uma estratégia de sobrevivência primordial: os pais passariam instruções para a sobrevivência do feto à custa da vida da mãe e a mãe contrabalançam as mesmas para proteger a sua vida.
Ultrapassada a lição e curiosidade, voltemos à Síndrome de Angelman.
Esta doença resulta de falta de expressão do gene UBE3A, que se localiza no cromossoma 15 (numa banda do seu braço longo). Mas só a cópia materna deste gene é lida no cérebro, onde a proteína UBE3A desempenha funções importantes para manter as células nervosas saudáveis.
A doença pode ser resultado de uma deleção ou alteração da metilação da banda 15q11.2-q13 materna, duplicação da região paterna com perda da contribuição materna (chama-se a isto dissomia uniparental, neste caso paterna), alterações cromossómicas estruturais maternas e paternas que predisponham à perturbação deste equilíbrio ou por último da alteração patogénica na sequência do gene UBE3A materno. Estes dois últimos mecanismos, embora menos frequentes, apresentam risco de recorrência. Assim é importante identificá-los para oferecer ao casal opções reprodutivas: nestas circunstâncias é possível o diagnóstico pré-natal molecular orientado ou diagnóstico genético pré-implantação.
Não existe nenhum teste diagnóstico que permita identificar os diferentes mecanismos ao mesmo tempo e por isso a avaliação e suspeita clínica, o correto pedido e interpretação dos exames são muito importantes.
(Mais uma curiosidade: pelo fenómeno de imprinting a deleção da mesma região, com origem paterna, afeta a expressão de genes diferentes e resulta na Síndrome de Prader-Willi, uma síndrome caracterizada também por atraso no desenvolvimento psico-motor e intelectual, mas clinicamente muito distinta).
Sabendo o mecanismo genético tem sido possível desenhar possíveis terapias. Atualmente estão em curso ensaios clínicos para terapias que visam a alteração da leitura do gene UBE3A- tentando ligar a cópia silenciada deste gene no cromossoma paterno. São esperados resultados destes ensaios este ano.
Assinala-se hoje o dia da Síndrome de Angelman, uma síndrome que afeta gravemente o desenvolvimento psico-motor e intelectual dos indivíduos afetados, mas não o seu sorriso.
Mas não esqueçamos, que por trás do sorriso quase constante destas crianças, escondem-se as grandes dificuldades destas famílias. As dificuldades do diagnóstico, no financiamento das diferentes terapias, a ansiedade na procura de uma escola, uma professora e um grupo que acolha bem a criança, na procura de uma equipa médica, a incerteza do acompanhamento na transição para a vida adulta, o cansaço da família cuidadora, a falta de apoios, de respostas terapêuticas, o receio da prospeção dos cuidados (e amor) aquando do fim de vida do progenitor.