«Não pensei duas vezes, larguei o chinelo lá mermo e saí voado. O cana gritou na hora que ia aplicar. Passei mal, papo reto, fui correndo com o cu na mão, queria nem olhar pra ver qual ia ser. Lembrei do meu irmão, de nós jogando golzinho na rua. Ele era sempre o mais rápido, era neurótico na corrida. Eu tava correndo quase que nem ele, no desespero. Quase chorei de raiva. Eu sei que o Luiz não era X9, meu irmão nunca que ia xisnovar ninguém, morreu foi de bucha, no lugar de um vacilão desses daí que o mundo tá cheio. Isso sempre me enche de ódio.
Meu corpo todo gelou, parecia que tava feito. Era minha vez. Minha coroa ia ficar sem filho nenhum, sozinha naquela casa. Mentalizei Seu Tranca Rua que protege minha avó, depois Jesus das minhas tias. Eu não sei como conseguia correr, menó, papo reto, meu corpo todo parecia que tava travado, eu tava todo duro, tá ligado? Geral na rua me olhando. Virei a cara pra ver se ainda tava na mira do verme, mas ele já tinha dado as costas pra continuar revistando os menó. Passei batido!» (pp. 83-84, «Rolézim», O Sol na Cabeça)
Há livros de que não vale a pena falarmos se não mostrarmos a quem nos lê do que estamos a falar. O Sol na Cabeça é um desses livros — talvez porque é tão bonito quanto perturbante, o que sem dúvida é um triunfo que nem todos os livros de contos facilmente conquistam.
E esta é só uma pequena amostra do que estas 130 páginas têm para nos dizer. Sim, porque este é um livro de 13 contos que não só conversam connosco, leitores, como nos deixam gravadas mensagens de aviso prementes, a que devíamos, talvez, estar mais atentos.
O autor Geovani Martins — que nós conhecemos no FOLIO Festival 2019 — é a última grande (e jovem!) revelação da literatura brasileira e esta maravilhosa estreia — em Portugal patrocinada pela Companhia das Letras — já é um sucesso editorial tão grande que, enquanto o diabo esfrega um olho, já foi traduzido para inúmeras línguas e está a ser adaptado ao cinema.
O Sol na Cabeça é, no fundo, um trabalho de introspecção, de quem nasceu e foi criado nas favelas do Rio de Janeiro, pautado por uma sensibilidade absolutamente implacável. Sob o sol do Rio, a prosa destas histórias — como é o caso da «Rolézim», que acima cito, e da «História do Periquito e do Macaco» — vive da violência (que não alimenta, mas da qual não foge), da discriminação (a que as pessoas se habituam) e do tráfico de drogas (cujo fluxo é indiscritível, mas as regras quase inalteráveis). Além disso, torna-se ainda mais real com o tom oral e atento que o autor imprime a cada uma das suas linhas — e não se assustem que a edição portuguesa vem acompanhada de um glossário! Como diz Dom Philips no The Guardian, «nas mãos de um escritor menos habilidoso alguns contos poderiam resultar desesperados e cruéis», mas o que lemos é uma prosa com descrições vívidas e comentários reais, que não se escondem da vergonha que é estar no lugar onde as atrocidades de facto acontecem.
Por outro lado, durante introspecção sobre o que vai de errado no mundo, Geovani Martins reserva um lugar especial para o contacto com a ‘natureza’ das coisas mais belas, como o amor pela família, o prazer das brincadeiras com amigos, as vidas amorosas rápidas e desligadas, a benevolência das crianças e a bênção que é saber respeitar as crenças dos outros. Exemplos disso, para mim, são o dócil e corajoso conto «O Caso da Borboleta» e o conto «A Viagem», que bem podia virar filme.
O Sol na Cabeça é um sucesso porque merece sê-lo. E quem tiver, como eu tive, o prazer de conhecer a simpatia do Geovani não vai ter sequer ter tempo de sentir inveja dele.
Obra: Sol na Cabeça
Autor: Geovani Martins
Editora: Companhia das Letras
2.ª reimpressão da 1ª. edição, julho de 2019
Lisboa
Marta Cruz
(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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