Ler para Crer: Um dicionário dos diabos

A sugestão literária semanal da equipa Escrivaninha, na nova rubrica “Ler para Crer”.

Mas quem é que, afinal, lê um dicionário? E, ainda por cima, da perspectiva do diabo? Este pode ser o primeiro pensamento impulsivo e indignado de um leitor, mas para rebater esse argumento, convém desde já esclarecer que este não é um dicionário comum — não será sequer um “dicionário” no sentido normal do termo. E em relação ao espírito endiabrado que anima este livro, esse promete fazer rir os mais beatos.

 

Cáustico e humorístico, Ambrose Bierce leva-nos a pensar se não haverá um discreto esgar ditatorial na maioria dos dicionários que nos sorri, tendo a pretensão de nos apresentar a verdade das palavras, e por extensão, a do mundo.

 

A definição de dicionário que Bierce apresenta menospreza precisamente esse outro dicionário banal, descrevendo-o como “um dispositivo literário malévolo para impedir o crescimento da língua e para a tornar rígida e pouco flexível”. Já o seu trata-se de “uma obra muito útil”.

 

Na esfera desta nova semântica, Bierce caricaturiza a alegria de certos conceitos. A noiva, por exemplo, é alguém que só atrás de si tem “excelentes perspectivas de felicidade”. Sim, há um certo pessimismo e descrença na calma que palpita nas definições felizes. Mas este não é um livro triste, trata-se, antes, de um compêndio de ironia, humor e de uma fina inteligência — que, aliás, os desenhos de Ralph Steadman condensam.

Nesta obra, indubitavelmente literária, Ambrose Bierce testa, estica, leva ao limite as definições comuns, confronta-as com as suas falhas e lacunas, interpela-as e delas se ri sem pudor — como acontece, por exemplo, quando define o advérbio literalmente: “Figurativamente, como em “O lago estava literalmente cheio de peixes”, “A praia estava literalmente às moscas””.

 

E comove, como em passagens profundamente poéticas, quando define alívio: “Acordar cedo, numa manhã fria, e descobrir que é domingo” ou hábito: “As algemas do homem livre”.

 

Bierce levou-me a ver a linguagem comum como uma velha entretida nas suas manias e vícios — à qual só (alguma) literatura pode dar, de novo, a tez brilhante de um outro significado.

 

Obra: Dicionário do Diabo

Autor: Ambrose Bierce

Ilustrações: Ralph Steadman

Selecção e Tradução: Rui Lopes

Prefácio: Pedro Mexia

Editora: Tinta da China

 

Elsa Alves

(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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