Uma pitada de magia e muita ciência. Este é o (incrível) mundo da gastronomia molecular

Há quem diga que encontrar o ponto certo de cozedura dos alimentos ou a combinação perfeita para agraciar o palato é uma espécie de alquimia, mas a gastronomia molecular leva esta ideia a todo um novo nível de excentricidade.

Por Paulo Mendonça

À primeira vista, gastronomia e ciência têm pouco em comum, mas só para os menos atentos.

A temperatura e o tempo certos de cozedura dos alimentos, a mecânica inflexível através da qual se consegue fazer uma maionese caseira no ponto e a utilização do sumo de limão para evitar a oxidação de determinados vegetais são apenas alguns exemplos de como a culinária obedece a princípios químicos básicos, que determinam a diferença entre um bom e um excelente prato.

A gastronomia molecular vai ainda mais longe, podendo ser definida como um ramo da ciência dos alimentos que tem por objetivo analisar, do ponto de vista científico, os fenómenos que ocorrem quando se cozinha e degusta os alimentos. Não se trata, portanto, de uma moda ou uma tendência de chefs vindos de países exóticos e longínquos.

É de ciência, na verdadeira ascenção da palavra, que trata a gastronomia molecular. Não deve ser confundida com as tradicionais ciências alimentares, porque o seu objeto de estudo é mais limitado. Em causa, as preparações de pequena escala, num contexto em que a alimentação é vista como um todo: os ingredientes crus, a forma como são preparados e ainda a maneira como são degustados.

A gastronomia molecular é multidisciplinar, envolvendo não apenas a química, mas também a física, a biologia e a bioquímica. Por tratar a alimentação como um todo, tal como descrito anteriormente, a gastronomia molecular abrange também o consumidor, pelo que a fisiologia, a psicologia e a sociologia também são envolvidas neste ramo da ciência.

Esta forma global de olhar para a alimentação foi o ponto de partida para os estudos do húngaro Nicholas Kurti, professor em Oxford, e do francês Hervé This, físico-químico, que no início da década de 80 deram origem a esta ciência. Os dois cientistas testaram receitas de diversas regiões do globo e deitaram por terra alguns mitos da culinária, como a ideia de que seria necessário utilizar sal na cozedura dos legumes para que estes mantivessem a sua cor original.

Levar o método científico para a cozinha permitiu descobrir coisas fantásticas. Sabia, por exemplo, que o ponto de cozedura do ovo é atingido quando o seu interior chega aos 68 graus? E que esta temperatura é atingida ao fim de dez minutos? Ou que a diferença de um grau no ponto de cozedura do peixe (52-54 graus) é quanto basta para fique mal passado, no ponto ou demasiado passado?

Parecem preciosismos, mas é de precisão que trata a culinária.

Com a gastronomia molecular, pretende-se otimizar a qualidade dos pratos tradicionais, introduzir novas técnicas – entre muitas outras, a desidratação dos alimentos em laboratório e a cozedura a baixas temperaturas – e recorrer a ingredientes que provavelmente nunca pensou usar no jantar, como agentes gelificantes, espessantes e corantes de origem natural ou até azoto líquido.

Embora existam algumas receitas básicas e técnicas que podem ser utilizadas no dia-a-dia, a gastronomia molecular não é um tipo de culinária fácil de adotar para um uso recorrente em casa. Além da excentricidade de algumas receitas, das ferramentas necessárias e dos conhecimentos de ciência que requer, esta é uma gastronomia sofisticada e exclusiva que pode ser saboreada em restaurantes que a ela se dedicam.

Em Portugal, o Cantinho do Avillez e o restaurante LOCO são dois exemplos de locais onde se podem degustar iguarias exclusivas deste tipo de cozinha.

 

Métodos básicos da gastronomia molecular

 

Espumas

Provavelmente já viu alguns pratos de gastronomia molecular ornamentados com espuma.

É um ornamento, mas é também uma parte considerável do sabor do prato, visto que aquela espuma tem sabor e irá perceber porquê depois de saber como ela é feita.

Antes de mais, importa perceber o que é uma espuma, pergunta que parece não ter sentido por tratar-se de algo perfeitamente comum, mas que na gastronomia molecular é importante para compreender o princípio químico do que fazemos.

A espuma é, em termos simples, a substância que se forma quando aprisionamos bolhas de ar (ou outro gás) num líquido ou sólido. O método mais conhecido de criar uma espuma para os nossos pratos de cozinha molecular foi inventado pelo chef catalão Ferran Adrià e faz uso de uma garrafa do tipo sifão, normalmente utilizada para a aplicação de chantilly no prato.

É feito um sumo com os ingredientes pretendidos (frutas, legumes ou mesmo água de marisco) que, depois, é misturado com gelatina e introduzido no sifão. Uma outra técnica de fazer espuma, ainda mais fácil, consiste em misturar o tal sumo de ingredientes com lecticina de soja no liquidificador. Tão simples como isto.

 

Esferificação

A esferificação é um outro método muito utilizado na cozinha molecular, consistindo em aprisionar um líquido numa esfera perfeita.

A base da esferificação está no alginato, uma substância extraída de algas com propriedades gelificantes, que é utilizada na indústria alimentar para alterar a viscosidade de líquidos. É frequentemente utilizado em sorvetes e bebidas.

O alginato reage com o cálcio, resultando na película que reveste as esferas. Deste modo, para esferificar um ingrediente já liquidificado, devemos misturá-lo com alginato num recipiente e, à parte, fazer uma mistura de água com cloreto de cálcio.

Depois, goteja-se a mistura com alginato no recipiente onde está a água com o cloreto de cálcio. A reação das duas substâncias irá criar uma esfera por gota. Através deste processo é possível criar falsos caviares dos mais variados sabores, como cenoura, beterraba, pepino ou quaisquer outros ingredientes que seja possível liquidificar.

Uma outra forma de esferificar, conhecida por esferificação inversa, consiste em misturar o ingrediente liquidificado com gluconato de cálcio e lactato de cálcio e, num recipiente à parte, água com alginato. Por fim, goteja-se a primeira mistura na segunda. O método inverso tem algumas vantagens, visto que existe a adição de outros sabores no resultado final, além de ser possível esferificar líquidos com alto teor alcoólico.

 

Gelificantes

Os gelificantes são muito utilizados na cozinha molecular para criar alimentos “falsos”, como um esparguete de manga, por exemplo.

Alguns exemplos de gelificantes são a gelatina, o ágar e a metilcelulose. A gelatina é o de mais fácil acesso. De origem animal, obtida dos ossos dos bovinos, a gelatina é composta basicamente de colágeno, ou seja, proteína. Dissolve-se a quente e gelifica a frio.

Por outro lado, o ágar é uma substância difundida largamente na cultura oriental, sendo extraído de algas vermelhas. É um hidrato de carbono da classe dos polissacarídeos, pelo que é substancialmente diferente da gelatina, apesar de ser um gelificante. Dissolve-se a quente e gelifica à temperatura ambiente. Com o ágar é possível criar alguns caviares falsos, em que o líquido solidifica também no interior da esfera, ao contrário do que acontece no processo de esferificação.

Por fim, a metilcelulose é um derivado da celulose e hidrato de carbono da classe dos polissacarídeos, tal como o ágar. Além de alterar a viscosidade de líquidos, serve também como emulsificante, ou seja, permite misturar dois líquidos que normalmente não se misturam, como a água e o azeite, por exemplo.

Ao contrário da gelatina e do ágar, a metilcelulose dissolve- -se a frio e gelifica a quente. Pode ser utilizada, por isso, para fazer gelatinas quentes, entre outras aplicações. Com recurso a uma destas substâncias, a gelificação é uma técnica que permite testar e brincar com sabores e texturas, mas é importante referir que se perde alguma intensidade do sabor em favor da estética.

 

Faça você mesmo

Alterar as propriedades dos alimentos faz parte da arte da cozinha molecular, e este é um caso em que vamos transformar um sólido num líquido. Esta receita é uma criação de um dos grandes chefs de renome em gastronomia molecular, Ferran Adrià, e foi o primeiro prato com esferificação inversa a ser introduzido no restaurante elBulli, na Catalunha, em 2005.

Ingredientes
– 500 gramas de azeitona
– 0,75 g de goma xantana
– 2 g (1%) de lactato de cálcio
– 1,5 litros de água
– 7,5 g de alginato de sódio
– azeite extra virgem
– casca de limão
– raminhos de tomilho fresco
– raminhos de alecrim fresco
– alho
– pimenta do reino

 

Preparação

Comece por misturar o alginato de sódio na água com a ajuda de um liquidificador até que esteja completamente dissolvido. Deixe repousar no frigorífico por 24 horas, para que o ar que entrou na mistura desapareça e o alginato de sódio esteja completamente reidratado.

Remova os caroços das azeitonas e processe-os com uma varinha mágica. No final coe as azeitonas com a ajuda de um escorredor. Misture o lactato de cálcio com o sumo de azeitonas e depois adicione a goma xantana.

Deixe em repouso, para hidratar, durante um minuto. Bata a mistura com uma varinha mágica e deixe no frigorífico por 10 minutos. A mistura deverá estar densa, com a consistência de um molho grosso. Se tirar um pouco desta mistura com uma colher e voltar a colocá-la no recipente, a superfície deverá demorar um pouco a nivelar novamente.

Se a consistência não for esta, adicione mais goma xantana. As adições devem ser de 0,2 gramas de cada vez. Quando chegar ao resultado pretendido, reserve no frigorífico por 24 horas. Para aromatizar o azeite, amasse o alho e frite em apenas 20% do azeite que planeia utilizar para marinar as azeitonas. Antes do alho começar a dourar, adicione o resto do azeite e deixe aquecer. Quando estiver quente, adicione o tomilho, o alecrim e a pimenta. Guarde num recipiente fechado, num local quente e seco.

Está tudo pronto para começar a criar as esferas de azeitonas. Retire com uma colher o tamanho desejado para uma esfera da mistura de azeitonas e, cuidadosamente, deposite no banho de alginato de sódio. Não deixe uma esfera tocar noutra, caso contrário elas irão colar-se.

Deixe as esferas no banho de alginato de sódio durante dois minutos e meio e remova-as com uma escumadeira. Depois, mergulhe-as devagar em água filtrada. Por fim, retire as esferas da água e coloque-as no azeite aromatizado, sem que toquem umas nas outras. Vai ao frigorífico por 12 horas e está pronto a servir.

 

Sugestões de apresentação:

– Sirva as azeitonas em colheres chinesas.

– Sirva em conjunto com azeitonas normais para comparar os sabores.

 

Esferas de morango decoradas com pimenta

Esta é uma receita simples de esferificação, que lhe permite fazer esferas de morango que explodem na boca, divertidas e ideais para pequenos e graúdos. Nesta receita, as esferas são decoradas com pimenta moída, mas pode utilizá-las para rechear bolos ou envolvê-las em chocolate para fazer bombons, por exemplo. As possibilidades são muitas e, apesar do aspeto excêntrico, estas esferas de morango são muito simples de preparar.

Ingredientes
– 250 g de puré de morango (cerca
de 300 g de morangos)
– 10 g de açúcar
– uma pitada de sal
– 5 g de lactato de cálcio (2%)
– sumo natural de morango para armazenar as esferas, caso não as vá consumir nas próximas horas
Para a decoração
– pimenta do reino moída
Para o banho
de esferificação
– 1 litro de água destilada
– 5 g de alginato de sódio (0,5%)

 

Preparação

Processe os morangos num liquidificador até obter uma consistência de puré e, de seguida, coe-o num coador tão fino quanto possível. Adicione o açúcar, o sal e o lactato de cálcio. Misture bem.

Por fim, cubra com película aderente e armazene no frigorífico da noite para o dia, de forma a remover as bolhas de ar. Para fazer o banho de alginato de sódio, misture-o com água destilada, com a ajuda de um liquidificador ou varinha mágica. O alginato de sódio não se mistura facilmente com água, por isso poderá demorar um pouco mais do que está habituado na trituração de frutas, por exemplo.

No final, coe a mistura num coador, cubra com película aderente e armazene no frigorífico da noite para o dia, de forma a remover as bolhas de ar. Depois de passado o tempo necessário, pode fazer a esferificação. Para tal vai precisar do recipiente com o puré de morango com lactato de cálcio, da mistura de água com alginato de sódio, uma colher para fazer esferas grandes e um terceiro recipiente com água filtrada, que será utilizado para lavar as esferas, removendo o excesso de alginato de sódio.

Tire uma colherada de puré de morango e limpe a parte de baixo da colher com um guardanapo. Despeje cuidadosamente o puré na solução de água com alginato de sódio. Mexa levemente o banho de alginato de sódio sem tocar nas esferas. Não deve deixá-las tocar no fundo do recipiente, caso contrário irão ficar achatadas. Também não as deve deixar flutuar, ou a parte de cima não irá gelificar e a membrana não será completamente criada.

Outro cuidado que deve ter é não deixar duas esferas tocarem uma na outra, ou irão colar. Faça uma de cada vez até se habituar ao processo. Aguarde por cerca de dois minutos. Quanto mais tempo esperar, mais grossa será a membrana que envolve o líquido da esfera.

Para uma melhor experiência, o ideal é que a membrana fique o mais fina possível, mas suficientemente robusta para suportar o conteúdo da esfera. Cuidadosamente, remova a esfera do banho de alginato de sódio com uma escumadeira e mergulhe-a na água filtrada para remover o alginato.

Se não for consumir as esferas em pouco tempo, deverá conservá-las. No entanto, se as conservar a seco, a membrana irá romper-se. Deve, por isso, conservar as esferas num líquido do mesmo sabor, neste caso, em sumo de morango.

 

Sugestões de apresentação

– Coloque as esferas em colheres de sobremesa e posicione-as no prato.

– Decore com pimenta do reino.

 

 

 

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