Por vezes, ao cruzarmo-nos com indivíduos desajustados socialmente, mais reclusos, mas competentes em determinadas áreas e até geniais, mesmo sem competências médicas, arriscamos um diagnóstico: aquele tem Asperger! Aquela nossa vertente médica (ou louca?) de rotularmos a sociedade.
Estima-se que existam cerca de 40 milhões de pessoas em todo o mundo, 40 mil em Portugal, e é mais prevalente no sexo masculino à nascença (10 para uma).
Acredita-se que prodígios como Michelangelo (o pintor/escultor/etc., não a tartaruga ninja), Mozart, Andy Warhol ou Bill Gates possam partilhar este diagnóstico. A Síndrome de Asperger é de facto uma síndrome com características especiais, mas muitas vezes difíceis de distinguir de outras situações como o Autismo de alta funcionalidade: partilha das dificuldades de comunicação, interação social, a tendência por comportamentos repetitivos, obsessões, mas cognição normal, ou até acima da média. Não está presente a perturbação intelectual, mas o desenvolvimento global pode estar afetado pelas dificuldades em entender a mensagem e os sentimentos do outro (e os próprios)- o discurso tomado de forma demasiado literal, a falta de entendimento pela ironia ou empatia pelo desconforto, a dificuldade em entender regras sociais, o interesse restrito a determinados assuntos, mas também descoordenação motora, dificuldades na motricidade fina, falta de aptidão para atividades físicas, o receio de atividades colectivas e eventos sociais.
A Síndrome de Asperger deve o seu nome a Hans Asperger, um médico austríaco, ele próprio com peculiaridades comportamentais e … simpatias nazis (o que diminui bastante a minha simpatia pela designação da doença). Descreveu-a pela primeira vez em 1944 e referiu-se a ela como “psicopatia autista”. O dia internacional da Síndrome ainda acontece a 18 de Fevereiro, coincidindo com a data de nascimento do médico. Em 1981 o nome Síndrome de Asperger foi utilizado pela primeira vez, em 1989 foram definidos critérios clínicos para o seu diagnóstico. Em 1992 foi incluída na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10) da Organização Mundial da Saúde e em 1994 no Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (DSM-IV) da Associação Americana de Psiquiatria (o mesmo onde ainda constava a homossexualidade como doença).
Atualmente a designação Síndrome de Asperger já não existe como uma entidade distinta da Perturbação do Espectro do Autismo, esse super chapéu, onde se encaixam as diferentes nuances das perturbações da relação, comunicação e comportamento presentes no Autismo.
Falemos então de Autismo de forma lata. O seu diagnóstico ainda traz confusão e ideias erradas. Que há graus… Que é um diagnóstico etiológico… Que há análises laboratoriais que o comprovem…
Nada disto existe: é de facto um espectro (um contínuo de sinais e sintomas que não precisam estar presentes em todos os indivíduos, com complicações e prognósticos distintos), o diagnóstico é possível por testes (mas não de sangue e sim funcionais) e a sua etiologia é desconhecida (não sabemos o que o causa e por isso não o conseguimos “curar”).
O seu desenvolvimento inicia-se muito cedo (antes dos 2 anos de idade) e existe incidência familiar aumentada, pelo que se acredita que existam fatores genéticos na sua génese: erros nas nossas instruções e não “erros” de educação, alimentares e definitivamente não é culpa das vacinas!!!
Muitos pais perseguem esta resposta: o tal teste genético que diz que “é mesmo autismo!”. No entanto, este tipo de teste não existe: não se conhece nenhum gene que explique mais do que uma percentagem pequena dos casos de autismo.
Mas então não vale a pena fazer testes genéticos nunca? Faz sentido estudar, sim!
Um diagnóstico genético, saber exatamente que gene tem uma gralha e o que não está a funcionar, auxilia a vigilância, pode permitir uma terapia mais direcionada e oferecer aos pais opções reprodutivas, os tais testes pré-concepcionais e pré-natais, como a amniocentese, que permitem evitar a recorrência da doença. Atenção, a amniocentese pode ser realizada em diferentes contextos, com diferentes propósitos (testes). Um exame normal significa que foi excluído o que foi testado e isso pode ser só saber se os cromossomas (as unidades onde está a nossa informação genética), estão lá em número correto (o cariótipo). Isto nada nos diz sobre o autismo.
Então quando devemos fazer estudos genéticos? E que estudos genéticos?
A probabilidade de encontrarmos uma alteração genética aumenta quando o autismo não ocorre de forma isolada, quando é apenas mais um sintoma num quadro mais complexo: quando associado a malformações congénitas (por exemplo malformação cardíaca, renal, cerebral estruturais), dismorfismos (aqueles traços faciais diferentes do resto da família), perturbação do desenvolvimento intelectual ou da somatometria (as alterações na estatura, peso ou perímetro cefálico – a “medida do chapeú” como explico aos meus doentes pediátricos). Dependendo da suspeita, ou na ausência de uma suspeita específica pedimos testes mais direcionados ou abrangentes, como a pesquisa do X-frágil, um array-CGH (que exclui por exemplo a ausência de pequenas regiões do ADN) ou um exoma (que estuda alterações da sequência em vários genes ao mesmo tempo).
Por outro lado, quando o autismo ocorre de forma isolada, raramente há teste genético que nos explique ou antecipe o diagnóstico. Este é por exemplo o caso na Síndrome de Asperger.
Mas se acreditamos que há factores genéticos, como se explica que os testes genéticos não o detetem?
Evoluímos imensamente no nosso conhecimento e capacidade de testar o código genético, mas este é apenas uma base, há muitas camadas de informação e desconhecimento nesta magnífica área.
Explicando melhor, o nosso ADN é uma sequência de 3 biliões de letras, a mesma, em cada uma das nossas células. Esta sequência única é o nosso código genético (genoma), apesar de muito muito semelhante entre humanos e até entre humanos e espécies díspares de animais como a mosca da fruta: diferimos em menos de 1% entre humanos e 75% dos genes associados a doenças humanas têm um gene correspondente na mosca-da-fruta (incrível, não é?).
O nosso conhecimento da Genética Humana cresce com a nossa capacidade de estudar e entender o que estamos a ver. A Genética Médica ainda está muito restrita às deleções e duplicações do ADN e à sequenciação e identificação de erros em genes de forma individual.
Aos poucos começamos a reconhecer a ação poligénica (a forma como os genes trabalham em equipa) e às camadas que fazem do código apenas uma base, um hardware onde instalamos diferentes aplicações, que permitem, potenciam e otimizam funcionalidades únicas. Para um mesmo código escrito, podemos ter diferentes leituras e conversas entre genes. Ainda não o conseguimos é traduzir em testes clínicos.
Eu acredito que o autismo resulta de “conversas desconexas”, erros de leitura, “aplicações” não ou mal instaladas no nosso genoma. Um nível de processamento da informação e desenvolvimento cerebral diferente. Errado? É sempre um debate difícil quando falamos dos indivíduos altamente funcionantes. Se os indivíduos, previamente conotados com Síndrome de Asperger podem ser bem sucedidos, quando a sua obsessão pelo detalhe se torna um trunfo, faz sentido estigmatizá-lo com um nome de uma síndrome? Deverá ser considerado doença ou diferença? Há quem defenda a sua exclusão como doença de todo, outros protegem-na para angariar maior defesa para as fragilidades destes indivíduos.
No fim, sejam cerebrais ou em comunidade, quando se trata de autismo precisamos de mais e melhores conversas e precisamos de mais empatia, daquela que não existe em comprimidos. Talvez um dia a Genética ajude este diálogo a fazer sentido.