Há cem anos, uma descoberta inesperada transformaria para sempre a forma como lidamos com doenças gastrointestinais. O microbiologista francês Henri Boulard, que tinha partido em missão pela antiga Indochina, para encontrar uma levedura resistente ao calor para a indústria cervejeira, acabou por “tropeçar” em algo muito mais promissor no meio de um surto de cólera. O achado fortuito não rendeu os avanços esperados para a indústria cervejeira, mas inaugurou uma nova era no tratamento de distúrbios gastrointestinais.
Boulard reparou que a população vietnamita, a braços com a cólera, tratava a diarreia severa com uma infusão à base de cascas de líchias e mangostões. Intrigado com a eficácia do método, decidiu investigar. De volta a França, isolou o agente responsável por essa ação terapêutica: uma levedura única e poderosa, capaz de restaurar o equilíbrio da microbiota intestinal. Assim nascia a Saccharomyces boulardii CNCM I-745, o primeiro probiótico do mundo.
Cem anos depois, essa pequena levedura continua a salvar milhões de vidas, sendo utilizada no tratamento de diarreias associadas a antibióticos, infeções intestinais e distúrbios digestivos. O acaso pode ter guiado os passos de Boulard, mas foi a sua curiosidade que transformou uma observação numa solução global.
Uma viagem no tempo em palco
A história desta jornada improvável em torno da descoberta da Saccharomyces boulardii, será recriada em palco, no dia 15 de março, com uma peça de teatro imersivo, no antigo hospital militar da Estrela, em Lisboa. Em “Pioneiros do Invisível – Uma História Viva da Microbiota”, o público não será apenas espectador, mas parte da narrativa. Livre para explorar diferentes cenários, acompanhar personagens e reviver momentos-chave desta aventura científica, será transportado até aos anos 20 do século passado, para acompanhar os passos de Boulard na sua missão pelo sudeste asiático.
A peça percorre os momentos mais marcantes da trajetória da levedura: os anos 50, quando as famílias Hublot e Vallet adquiriram os direitos da descoberta e desenvolveram o processo de fermentação e a venda em frascos de vidro, até à fundação do laboratório francês Biocodex, que levou a Saccharomyces boulardii para o mundo. A levedura chegou a Portugal somente em 1954 e, em 1962, tornou-se o primeiro probiótico reconhecido como medicamento. Atualmente está presente em mais de 100 países.
Mais do que uma recriação histórica, a peça “Pioneiros do Invisível” é um convite para uma imersão no universo fascinante da microbiologia, onde uma simples levedura – invisível a olho nu – se tornou uma aliada essencial da saúde humana.
As comemorações do centenário são também um pretexto para juntar investigadores que nos últimos anos se têm dedicado ao estudo da microbiota humana, ao abrigo de bolsas atribuídas pela Microbiota Biocodex Foundation. Estão confirmadas as presenças de investigadores do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto e da Faculdade de Medicina de Coimbra.
Diarreias severas ainda matam milhares pelo mundo
Passou um século, mas as diarreias severas ainda ceifam vidas. Milhares de pessoas morrem todos os dias, por falta de acesso a água potável e saneamento básico. De acordo com dados da UNICEF*, mais de 400 mil crianças com menos de cinco anos morrem anualmente devido a doenças relacionadas com a falta de água potável. A água não tratada pode transmitir mais de 100 doenças, como diarreia, cólera, disenteria, hepatite A, febre tifoide e poliomielite. Sem tratamento, a desidratação e subnutrição fragilizam o sistema imunitário e pode tornar estas doenças fatais.
Prémio com o nome do investigador instituído em 2021
Para homenagear o investigador francês e aprofundar o compromisso com a melhoria da saúde pública em todo o mundo, a Biocodex Microbiota Foundation lançou, em 2021, o Prémio Henri Boulard de Saúde Pública, que financia anualmente projetos que tenham um impacto positivo na saúde a nível local, desde a educação e consciencialização em saúde, novas infraestruturas, ou projetos agrícolas e de purificação de água.
*UNICEF – Dados sobre Saúde Infantil e Diarreia:
UNICEF, One is too many: Ending child deaths from pneumonia and diarrhea, UNICEF, New York, 2016.