Entrevista: «Um bom médico tem de ter duas características, que são inegociáveis: empatia e competência», Tomás Pessoa e Costa, médico dermatologista e fundador da plataforma DIOSCOPE

Formado em medicina, com a especialidade de dermatologia, Tomás Pessoa e Costa não seguiu apenas a carreira convencional, ligada à prática clínica.

Quando pensamos na formação médica, esta está estreitamente ligada à prática clínica e ao tratamento de doentes. No entanto, a Era da Saúde Digital trouxe novos desafios à forma como se prestam cuidados de saúde e abriu um novo conjunto de possibilidades na carreira médica, que outrora estava muito focada nas diferentes especialidades.

Formado em medicina, com a especialidade de dermatologia, Tomás Pessoa e Costa não seguiu apenas a carreira convencional, ligada à prática clínica. As motivações que o levaram a tomar esta decisão revelou em entrevista à Forever Young.

O que o levou a entrar para medicina?
A minha mãe. Eu tenho uma visão pouco romântica da entrada no ensino superior. Acredito pouco nas “vocações” de adolescentes de 15 ou 16 anos, com pouca experiência de vida e muito condicionados pelas opiniões de pais, amigos e professores. E acho que não fui exceção à regra. Na altura, o que queria mesmo era ser atleta de alta-competição de judo e ir aos Jogos Olímpicos. E para isso, sempre contei com o apoio incondicional dos meus pais. Como sabia que entrar em Ciências lhes ia dar alguma “paz de espírito”, acabei por lhes fazer a vontade. Acabei médico e muito feliz com essa escolha. No fundo, confirma-se: as mães têm (quase) sempre razão…

E a especialidade, o que o levou a escolhê-la?
A meio do curso de Medicina, conheci a minha mulher e as prioridades mudaram. Ser atleta de alta-competição só faz sentido se tivermos uma motivação irracional que nos leva a abdicar de quase tudo para tentarmos ser os melhores do mundo no nosso desporto. E quando a conheci, perdi isso: já não queria ser atleta, queria era ser médico, ao pé dela. Então, abandonei o Judo e fiz do exame de entrada na especialidade, os meus “Jogos Olímpicos”. Naquele ano, preparei-me como se estivesse a treinar para uma prova e, no fim, acabou por correr tudo bem: tirei a nota máxima e consegui entrar em Dermatologia. Foi uma escolha difícil, porque – lá está –o que me tinha motivado era o desafio de fazer o exame e nunca tinha pensado no que ia fazer depois. Acabei por me decidir quando visitei o serviço do Hospital dos Capuchos, que costuma ser o primeiro a ser escolhido a nível nacional. Fui muito bem recebido, por médicos que estavam genuinamente contentes com a sua escolha, e pensei: na “pior” das hipóteses, ficas assim, a trabalhar com colegas competentes e felizes, o que é meio caminho andado para as coisas correrem bem. E assim foi.

Para si o que é mais desafiante na profissão de médico?
Um bom médico tem de ter duas características, que são inegociáveis: empatia e competência. E esse equilíbrio não é fácil. Um médico que trabalha muito apenas para si, para ser competente nas suas decisões, para que sejam inatacáveis do ponto de vista técnico, mas que não consegue perceber os reais problemas do doente, não é um bom médico. Mas um médico “simpático”, mas que não trabalha para ser competente, é igualmente trágico.

Na sua analise quais as maiores dificuldades na formação de médicos?
A falta de médicos especialistas no SNS. Continuamos a tentar soluções alternativas para um problema que é claro: sem especialistas no SNS, não conseguimos ter tutores para os nossos internos e perdemos a nossa capacidade de renovar as equipas e de prestar cuidados diferenciados. Nós não temos falta de médicos: estamos acima da média europeia. Nós não temos nenhum “lobby” na entrada nas faculdades de Medicina: temos aumentado as vagas todos os anos. O que faltam são especialistas e faltam no SNS. Temos rapidamente de voltar a captar estes médicos, que são a base de todos o sistema.

Na formação de um médico qual é a importância, na sua opinião, da prática clínica e do tratamento de doentes?
Não consigo sequer entender que possa existir formação médica, sem que exista experiência no “terreno”, com os doentes. São eles que nos fazem querer aprender.

Concorda que algo mudou com a chegada da Era da Saúde Digital? Como encara essa mudança?
Claro. Com a transição digital, deixámos de ter barreiras físicas ao conhecimento médico. Passámos de um modelo que centralizava a informação em grandes bibliotecas e em grandes anfiteatros, onde cada livro só podia ser consultado por um médico de cada vez, e cada palestra só podia ser ouvida naquele tempo e espaço, por um número limitado de pessoas; para um modelo onde toda a informação médica do mundo está na palma da nossa mão, no nosso smartphone. O médico mais competente, já não é o que tem melhor memória. É o que consegue processar melhor essa informação e usá-la em prol do seu doente. E isso tem um impacto tremendo na nossa prática clínica.

Quais os maiores desafios que se colocam hoje a quem presta cuidados de saúde?
Voltamos a nos debruçar sobre a necessidade de equilibrarmos competência e empatia. E, num mundo digital, onde as decisões médicas são cada vez mais complexas, e onde complexas, e onde temos de ver cada vez mais doentes em menos tempo, este temos de ver cada vez mais doentes em menos tempo, este equilíbrio torna equilíbrio torna-se cada vez mais difícil.se cada vez mais difícil.

Apesar da sua formação, hoje exerce outras funções. De que forma aconteceu essa mudança (se lhe podemos chamar assim)?
No meu caso, não foi bem uma mudança, pois eu mantenho a minha atividade clínica. E criar a minha própria empresa, não foi algo planeado. Partiu exatamente das necessidades que eu –e os colegas que abraçaram este desafio – sentimos no terreno, como médico. Existiam demasiadas barreiras ao conhecimento médico e precisávamos de acelerar essa transição digital. E o que fizemos foi uma plataforma de conhecimento médico (dioscope) que pretende centralizar a educação médica digital em Portugal. No fundo, queremos que cada médico possa sempre ter acesso ao melhor conhecimento, como, quando e onde quiserem.

Existem hoje novas possibilidades na carreira médica?
O mercado está mais “liberal”: penso que há 30 ou 40 anos seria impensável alguém ser médico, e não trabalhar como médico, ou no limite, na área da Saúde. Hoje em dia, até por necessidade –temos centenas de médicos que todos os anos ficam fora do concurso de acesso à especialidade por falta de capacidade formativa (a tal falta de especialistas, que faz mesmo “mossa”) –vemos médicos a trabalharem em consultoras, em firmas de investimento ou até a lançarem as suas próprias empresas (com, ou sem relação com a Saúde). No fundo, as características que levaram estes médicos a serem médicos –a enorme capacidade de trabalho, de resolverem os problemas dos seus doentes, de trabalharem em equipa –são muitíssimo valorizadas e tornam-nos em excelentes profissionais, estejam onde estiverem.

E o enfoque nas especialidades mais tradicionais, mantêm-se ou, de alguma forma, também ele se alterou?
Mantém-se. Continuamos a ter uma competição muito elevada pela entrada em algumas especialidades. O que mudou um pouco foi o perfil das especialidades mais procuradas. As gerações mais jovens valorizam muito mais a família, o tempo pessoal. E isso tem também que ver com a nossa própria organização social: o modelo tradicional da família, onde o “homem” trabalha e a “mulher” fica com os filhos, já caiu em desuso… E quando vemos que a maioria dos estudantes de Medicina são mulheres, percebemos que esta tendência se vai manter, o que tem um grande impacto nos nossos sistemas de Saúde. Acabaram os sistemas abusivos, que vivem à custa de horas extras e da vida pessoal dos seus profissionais.

De que se fala quando se fala em literacia em saúde? É ela hoje ainda mais importante?
A literacia em Saúde é fundamental para que consigamos prevenir a doença e diminuir a sobrecarga sobre o Sistema. Mas é em si mesmo um conceito teórico, que tem de viver de projetos e de pessoas que os liderem. E essas pessoas têm de estar “na linha da frente”, nos Hospitais, nos Centros de Saúde e nas Farmácias. Têm de ser os médicos, os enfermeiros, os farmacêuticos, as associações de doentes a liderarem projetos com impacto local que, no seu conjunto, façam a diferença. Sem essas pessoas, não passa de um conceito “bonito” mas inaplicável.

Foi importante para si a aquisição de novas competências diretamente relacionadas com as novas funções que exerce?
Sim, mas encontrei muitos paralelismos com a prática médica. Uma consulta acaba por ser muito semelhante a uma “negociação”, onde o médico faz uma proposta de tratamento e tenta que o doente a compreenda e aceite. E tem também já muita experiência com o trabalho em equipa: com outros colegas médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, administrativos… essa capacidade de conseguirmos comunicar e trabalhar com todos, é das características que acho mais importante no trabalho diário numa empresa.

Perante o que nos chega diariamente pelos órgãos de comunicação social são sérios os problemas pelos quais passa esta classe profissional hoje em dia. De que forma analisa esses problemas e como olha hoje para os sistemas de saúde nacionais?
Acabam por ser o reflexo do que fomos dizendo: um sistema público sobrecarregado, com falta de médicos diferenciados, que se foram afastando por se sentirem desvalorizados, e não foi uma desvalorização só salarial. Os médicos gostam muito do SNS, é a sua casa. Mas o mesmo extremismo ideológico que acabou comas PPP e que diabolizou os médicos que trabalhavam no público (onde gostam de estar, apesar de mal pagos) e no privado (onde precisam de estar, porque precisam de ser pagos), proibindo a contribuição no SNS a tempo-parcial, acabou por afastar muitas centenas de colegas, que perderam a “paciência” com estas medidas ilógicas que destruíram parte do SNS. Temos rapidamente de mudar de postura. De acabar com alguns “tiques” ditatoriais, de modelos de dedicação impostos à revelia dos médicos, que são um enorme tiro no pé. De acarinhar quem se dedica à causa pública e de adotar modelos de contratação que percebam as necessidades dos médicos e que reflitam o que se passa no terreno: um SNS que deve viver em parceria com o setor privado e social, otimizando os recursos instalados, e garantindo que nenhum português, rico ou pobre, fica sem médico. Se o fizermos, ainda vamos a tempo de salvar este sistema que muito nos orgulha.

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