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Ideologias, partidos e credos: um mundo em que quase tudo se tornou tabu

As recentíssimas brigadas dos bons costumes, animadas de um neopuritanismo semelhante ao velho quadro de valores morais que vigorava no tempo dos nossos bisavós, condicionam hoje a liberdade, muitas vezes com o beneplácito das instituições democráticas.

17 Setembro 2019
Forever Young

Andamos a perder parcelas de liberdade – cada vez maiores e de forma cada vez mais rápida. Alguns militantes da correcção política figuram na primeira fila dos que aplaudem estes constantes constrangimentos à divergência.

Não é nada de novo, excepto na escala da actual pulsão censória: em suposto benefício da “igualdade”, houve sempre gente pronta a ovacionar todas as restrições aos direitos fundamentais. Em nome de credos, partidos, ideologias.
Em nome da chamada “razão de Estado”. Grande parte da história dos últimos cem anos edificou-se nesta premissa, com os resultados desastrosos que sabemos.

«A grande batalha do final do século XX, aquela da qual depende o resultado de todas as outras, é a batalha contra a censura», escreveu em 1970 o filósofo e politólogo francês Jean-François Revel num livro provocatório, intitulado “Nem Marx Nem Jesus”. Palavras premonitórias que, com maioria de razão, podem aplicar-se ao século em que vivemos.

Quase tudo se tornou tabu. No Bairro Vermelho de Amesterdão, a câmara local passou a punir com multas os turistas que fotografem as prostitutas expostas nas montras públicas, retirando licenças aos guias que não impeçam a recolha dessas imagens. Em Ventimiglia, no noroeste de Itália, o padre da Igreja de Santo António ordenou aos fiéis que fossem rezar noutro lado para não incomodarem os refugiados islâmicos ali albergados. Na vila inglesa de North Shields, perto de Newcastle, a mãe de uma criança de seis anos lançou uma petição às autoridades escolares para suprimirem a narração da história da Bela Adormecida nas aulas, alegando que o príncipe beijou a rapariga sem o consentimento desta. “Tua Cantiga”, canção incluída no último disco de Chico Buarque, editado em 2017, causou clamores de indignação entre feministas brasileiras radicais, pela letra «machista» e de um «romantismo ultrapassado».

Menino ou menina?
Em Agosto de 2017, estoirou entre nós uma polémica tuiteira a propósito de dois cadernos pré-escolares editados pela Porto Editora que propunham exercícios para crianças dos dois sexos – um azul, para meninos; outro cor-de -rosa, para meninas. A estridente denúncia acusava a editora de contribuir para a absurda noção de que as  mulheres são menos inteligentes do que os homens, ilustrando tal tese com um único exemplo – um exercício manifestamente mais fácil na versão feminina.

Não foi preciso mais: logo se acendeu a indignação sobre a «perpetuação de estereótipos de género». Convocada de emergência, por orientação do ministro Adjunto Eduardo Cabrita, a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) assumiu que os blocos de actividades «acentuavam estereótipos de género» e sugeriu a sua imediata retirada do mercado.
Um Governo de irrepreensíveis pergaminhos democráticos viu-se constrangido assim que meia dúzia de talibãs das redes sociais levantou esta algazarra. «Tendo em conta a polémica que estava nas redes sociais (…), recomendámos à Porto Editora que pudesse retirá-los para apaziguar de alguma forma os ânimos», declarou na altura a presidente da CIG. Os alegados “bons costumes” tinham prevalecido sobre a matéria de facto, como o escritor e humorista Ricardo Araújo Pereira não tardou a demonstrar num programa de comentário político da TVI24: não havia afinal a menor razão para tal alarido. O que não impediu a Porto Editora de renunciar à comercialização dos caderninhos.

É permitido proibir
Os estudantes que levantaram pedras das calçadas parisienses no Maio de 68 proclamavam «É proibido proibir.» Meio século depois, a tendência inverteu-se: tornou-se de bom tom interditar filmes, livros, quadros, modas, imagens e palavras que possam perturbar mentes sensíveis.
A 12 de Julho do ano passado, a FIFA – organismo que detém a tutela máxima do futebol à escala mundial – comunicou a transmissão de novas directivas aos canais televisivos que asseguravam a transmissão de jogos do Campeonato do Mundo. Para porem fim às imagens de mulheres nas bancadas, na sequência de «30 queixas de sexismo» entretanto recebidas, de gente supostamente escandalizada com a exposição de rostos bonitos.

Não foi mera sugestão: foi imposição. Na final, a 15 de Julho em Moscovo, houve grandes planos de homens barbudos, crianças e bebés – mas nada de mulheres decotadas. Assim a FIFA satisfez em simultâneo dois influentes grupos de pressão: o das feministas radicais e o do fundamentalismo muçulmano. Sem esquecer, claro, que o próximo Campeonato do Mundo da modalidade será disputado em 2022 no austero e puritano emirado do Catar. Não há coincidências.

O louvável combate a práticas sexistas é uma das antecâmaras das novas censuras, como detectou Catherine Deneuve. «Vamos queimar os livros de Sade? Vamos qualificar Leonardo da Vinci como artista pedófilo e apagar os seus quadros? Retirar Gauguin dos museus? Destruir os desenhos de Egon Schiele? Proibir os discos de Phil Spector? Este clima de censura deixa-me sem voz e inquieta-me perante o futuro das nossas sociedades», escreveu a célebre actriz numa carta publicada em Janeiro de 2017 no diário francês “Libération”.
As pressões do clericalismo islâmico no combate às democracias liberais têm antecedentes mais remotos. Basta lembrar a condenação à morte decretada em 1989 pelo aiatola Khomeini, dirigente espiritual do Irão, contra o escritor britânico de ascendência indiana Salman Rushdie por ter escrito o romance “Os Versículos Satânicos”, considerado blasfemo pela elite religiosa de Teerão. Rushdie escapou de ser assassinado devido à segurança que o Governo do Reino Unido lhe proporcionou. Muito pior destino tiveram cinco autores da revista satírica “Charlie Hebdo”, assassinados em Janeiro de 2015 na sede da publicação, em Paris, por um comando terrorista islâmico.
Não faltou quem opinasse que o “Charlie Hebdo” tinha ido «longe de mais» nas imagens e palavras iconoclastas. Alguns destes contemporizadores aplaudiram em Dezembro de 2014 a decisão da Sony Pictures de abandonar a distribuição nos cinemas dos EUA do filme “The Interview”, onde o ditador norte-coreano Kim Jong-un era satirizado. Os canais diplomáticos de Pyongyang emitiram fortes protestos contra a «absurda arrogância cultural de Hollywood» e houve ameaças difusas de ataques às salas que ousassem exibir esta comédia: foi quanto bastou para que o filme se mantivesse à margem do circuito comercial.

Passado e futuro
A Constituição da República Portuguesa é clara, no seu artigo 37.º: «Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio. (…) O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.»
Acontece que a censura não começa nem termina no Estado. Nunca faltará gente a aplaudir o silenciamento nas suas diversas etapas autoritárias, que começam com pequenos passos.

Foi assim no passado, continua a ser agora. Com a brigada dos bons costumes apostada em pôr multidões ordeiras e ululantes a entoar a novilíngua deste admirável mundo novo, condenando sem cuidar do rigor dos factos, o vocabulário comum em democracia torna-se policiado como se vivêssemos em ditadura. E não tenhamos ilusões: estes patrulheiros insistirão em exercer censura também com carácter retrospectivo. Como nos ensinou George Orwell, quem controla o passado é capaz de controlar o futuro.


Ajustes de contas com a História

Causa celeuma a possível existência de um Museu das Descobertas em Lisboa. A palavra incomoda. Mas já não perturba quando se revela o descobrimento de água em Marte.

Estátua de Gandhi condenada à remoção da Universidade de Acra, no Gana.

Uma componente essencial das novas correntes censórias relaciona-se com a reescrita da História, à luz de conceitos contemporâneos, em permanente ajuste de contas com o passado.
Isto ficou bem evidente quando o Parlamento polaco, em Janeiro deste ano, aprovou por larga maioria uma lei que penalizava com prisão até três anos todos aqueles que aludissem à existência de «campos de concentração polacos» na II Guerra Mundial ou garantissem ter existido cumplicidade entre cidadãos daquele país e os ocupantes alemães que ali cometeram crimes de guerra. A celeuma internacional foi tão forte que forçou Varsóvia a recuar, retirando as sanções penais na nova versão do diploma, aprovada em Junho.

Em Agosto de 2017, em Baltimore, a autarca local ordenou a remoção das estátuas dos generais confederados Robert Lee e Stonewall Jackson, que se encontravam num jardim público desta cidade norte-americana, por serem «símbolos do esclavagismo». No mês seguinte, outro monumento a Lee foi derrubado em Dallas.
Nem Gandhi, herói da independência indiana, escapou a esta generalizada onda de reinterpretação da História: em Outubro de 2016, professores e estudantes da Universidade de Acra, capital do Gana, exigiram a remoção de uma estátua do famoso pacifista, sob a acusação de ter escrito que os indianos seriam «infinitamente superiores» aos africanos negros. Logo se sucederam os apelos à remoção de outras estátuas do patriarca hindu, em países tão diferentes como a Jamaica ou o Canadá. Em Portugal, a hipótese de ser inaugurado um Museu das Descobertas gerou em Abril de 2018 reacções fervorosas de parte da comunidade académica, indignada com tal designação. «Para os não europeus, a ideia de que foram “descobertos” é problemática», escreveram mais de cem historiadores e cientistas sociais em carta aberta ao presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina.

A palavra “Descoberta” – usada, por exemplo, ainda há dias, quando foi anunciado o descobrimento de água em estado líquido no planeta Marte – tornou-se tabu em Portugal. O museu, se alguma vez existir à beira-Tejo, chamar-se-á A Viagem.

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