Ler para Crer: “Fim”, de Fernanda Torres, “no doce balanço, a caminho do mar”

A sugestão literária semanal da equipa Escrivaninha, na nova rubrica “Ler para Crer”.

Consagrada no meio da representação em teatro e cinema, Fernanda Torres lança-se no universo literário com o romance Fim publicado pela Companhia das Letras em 2013. Eu, que tendo a desconfiar dos artistas ‘multi-facetados’ que criam em várias frentes, faço um mea culpa.

 

O romance foca-se em cinco personagens cariocas, às quais se referem, respectivamente, os cinco capítulos da obra: Álvaro, Sílvio, Ribeiro, Neto e Ciro. Entre esta massa masculina, um velho hipocondríaco, um doente de Parkinson, um sedutor potenciado pelo viagra, um marido fiel e um conquistador insaciável. O universo feminino é igualmente matizado, integrando tanto mulheres resignadas a um certo machismo, quanto feministas cultas mas amargas, com diferentes concepções de amor.

 

Compõe-se uma espécie de microcosmos onde convivem as mentalidades mais díspares, desde as mais conservadoras, corporizadas, por exemplo, pelo pai que pretende confrontar o deflorador da filha, às mais liberais — exemplificadas em Sílvio que se envolve em rituais orgíacos.

 

A variedade de personalidades resulta em múltiplos discursos que comportam estilos de vida, opiniões e mundividências várias em capítulos que (quase) podem ser lidos como textos independentes.

 

A partir destas personagens desenvolve-se aquele que é um tema de peso, que o próprio título indicia, e que percorre todo o romance: a morte. Cada capítulo inicia-se com a data de nascimento e de morte de cada personagem, como uma espécie de memento mori.

 

A par deste desenvolve-se um caótico rol de temas intrincados na modernidade — passando pelo casamento, pelo sexo e pela falsa libertação que dele advém, pelo adultério, pelas incontornáveis questões raciais, pela debilidade física e mental e pelo acaso como incipiente motor da vida.

 

Um dos aspectos mais interessantes do romance é a permeabilidade da própria estrutura externa aos temas. A narrativa adopta um ritmo célere — em poucas linhas condensam-se várias acções —, sendo frequente o uso do discurso indirecto livre, condizente com esse ritmo alucinante e devastador do quotidiano, que é fatal, mecaniza vocações e paixões.

 

Pontualmente, porém, o olhar analítico e perscrutador dos narradores imprime ao texto um ritmo paulatino marcado pela atenção ao pormenor, pela análise de determinada personagem e/ou situação, na forma de monólogo. Nesses momentos, a subtileza discursiva permite a construção de atmosferas ambíguas, paradoxais, e amiúde trágico-cómicas – como o funeral em que o desejo sexual se faz sentir.

 

Desenvolve-se uma reflexão a propósito do Brasil em termos políticos, sociais e culturais. Por meio das numerosas referências ao panorama cultural brasileiro — a Norma Bengell, ao tema “Lígia” de Tom Jobim, a Carmen Miranda, a Machado de Assis — delineia-se um Brasil artisticamente relevante, em diálogo com referências a personagens mitológicas como Adónis, personagens da tragédia grega como Cassandra e consagrados autores como Dante, Platão, Aristófanes (entre outros), num frutuoso exercício de intertextualidade que aproxima a obra contemporânea da autora brasileira da literatura canónica ocidental.

 

Fim prima pela fluidez da trama e pela densidade das reflexões que implícita ou explicitamente comporta. É o livro ideal para, mesmo em casa, usufruir, como nos diz Tom Jobim, de uma narrativa nesse “doce balanço, a caminho do mar”.

 

Título: Fim
Autor: Fernanda Torres
Editora: Companhia das Letras

 

Elsa Alves

 

(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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