Ler para Crer: “Um objeto cortante”, de Alexandra Maia

A sugestão literária semanal da equipa Escrivaninha, na nova rubrica “Ler para Crer”.

Um Objecto Cortante, de Alexandra Maia, caiu-me nas mãos há uns meses e veio, sem dúvida, deixar marcas.

 

Mas antes de auscultarmos o livro de hoje, não posso deixar de referir um outro, que ao primeiro me fez chegar, da autoria do poeta e crítico literário António Carlos Cortez: Poética com DicçãoCom edição da Jaguatirica e da Gato Bravo, este volume conta com uma série de ensaios sobre poetas brasileiros, no qual se inclui precisamente uma acurada reflexão sobre Um Objecto Cortante de Alexandra Maia — que, aliás, norteia este texto.

 

O primeiro livro da autora, Coração na Boca, foi publicado pela editora Sette Letras, em 1999. Vinte anos depois, é pela editora Gato Bravo que a Portugal chega Um Objeto Cortante que faz jus ao título.

 

Afinal, esta é uma obra que fere pelos poemas afiados, incisivos como uma agulha que nos atravessa o peito e espicaça a dúvida, a dor mais profundamente acomodada. Obriga a uma espécie de descida ao subsolo: ao que de mais cru e despudorado se oculta sob os dias rotineiros da casa.

 

Estes são textos que pensam e questionam a possibilidade de a poesia florescer, com todas as suas implicações, por entre o banal, onde a «fauna da imaginação» precisa de dividir o seu espaço com as lidas da casa, os filhos, o marido, a família — que da figura feminina bebem, provocando uma «Náusea até à boca», que o poema «Seca» tão bem corporiza.

 

É certo que na obra de Alexandra Maia se pensa também o lugar, que se pede ubíquo, da mulher na vida familiar e na arte da palavra — mas sem que os poemas se reduzam ao grito combativo de um qualquer manifesto feminista. Importa dizer que, no caso de Um Objecto Cortante, há arte e labor (poético) nesse grito.

 

Numa altura em que muitos livros ganham destaque pela actualidade de (justas) causas mas em que, por vezes, a avaliação do cariz estético, lamentavelmente, se relega para segundo plano — na Escrivaninha, seguindo a linha de Harold Bloom — celebramos os autores que, como Alexandra Maia, trabalham argutamente a linguagem, em certos momentos, primorosa.

 

Notem-se, por exemplo, no poema «Uma febre em flor», as repetições, aliterações e rimas internas, concorrendo para o ritmo do verso como se ele mesmo se desdobrasse como a flor — poética, de matriz baudelariana, sediada nas Les Fleurs du Mal — de que se fala: «É esperado que a flor se abra / mas o abrir-se liberta uma dor / que dobra a flor que se desdobra / — em teus dedos — / para ser mais que flor».

 

Para trás não fica o jogo semântico obtido com a mudança de posição verbal, no caso dos versos finais do terceto e do último monóstico de «Por um momento»: «Porque hoje, por um breve momento / foi vida / mas tão logo percebi // A vida foi» — lembrando-nos ainda a consciência que irrompe, interrompendo a vida, em Caeiro.

 

Ao mesmo tempo é com contenção e discrição – quase elegância – que o sujeito poético encara esta tentativa de conciliação dos universos da vida real e da vida poética: «Minha crise é particular / um sorriso na boca / a mente em erupção»; «Mas como explicar que o mundo é dentro?»; «Um vaso de culpas decora a estante da sala» — os respectivos versos dos poemas «Revelação», «Diante de tanto» e «O não dito».

 

Não pretendendo escalpelizar o livro — nem tendo feito um estudo que sequer o permitisse —, convidamos-vos a ir em busca desta poesia, garantindo a descoberta de pérolas ao nível da musicalidade, do pictórico ou do diálogo intertextual — que, aliás, atravessa fronteiras e gerações.

 

Lembro Baudelaire, Carlos Drummond de Andrade ou Eugénio de Andrade como algumas das influências que se verificam textualmente, e a mais ou menos velada alusão a Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke. Bem sabemos que, nesse livro, Rilke aconselha a quem escreva que a escrita se sobreponha a tudo. E essa certeza é quase ditatorial.

 

Porém, no caso dos sujeitos poéticos de Alexandra Maia, há ainda uma busca, apesar de desanimada e pessimista, pela conciliação entre vida e poesia. O regime do discurso tem o garbo da sugestão e da insinuação, e a pergunta, para nosso deleite literário, permanece.

 

*Este ensaio foi também inspirado pelo “Curso de Poesia Brasileiro” leccionado por António Carlos Cortez, organizado pela Livraria Travessa e ainda em funcionamento.

 

Elsa Alves

(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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