Hoje fizemos uma quiche. Quiche é uma palavra extremamente fina de ouvido. E fina de outras coisas também — que não é cá tripas ou rabo de boi, nem está para ser sequer feijoada, quanto mais chanfana.
Parece, assim, redondinha de anca, com um cabelão compridíssimo, mas apanhado na nuca com um lencinho burburry, uma palavra bonitinha que quer sempre estar montada em cima dos seus maravilhosos saltos agulha — a imagem de marca de uma moça de boas famílias que quer arranjar bom marido e estender a toalha ao sol nas praias da Comporta.
Quíííchee! — grita a mamã, muito desatinada porque a menina está deitada de corpo danone para o ar há já 20 minutos e ainda não se dignou a por um pinguinho de bronzeador, que assim não vamos a lado nenhum com esta história do ficar morena.
Quiche… Bem, digam lá o que disserem, há-de ser sempre uma tarte, e pouco mais do que isso.
Mas o certo é que, desde que Lisboa incutiu esta palavrita malandra no meu vocabulário — e que eu levei anos a assimilar –, toda a labrega experiência de comer uma fatia de tarte se transformou numa não melhor, mas mil e uma vezes mais esguia (e pretensiosa), experiência gastronómica de devorar, com pequenas dentadinhas controladas, uma requintada fatia de quiche digna dos melhores restaurantes.
Gente! É uma tarte feita à base de ovos. Quão sofisticada pode ser uma tarte, ou, melhor dizendo, uma torta, que no fundo é a tradução correcta para a palavra alemã kuchen — de onde, de facto, vem esta nossa quiche que, antes de ser nossa, foi francesa — razão pela qual até aceitamos a chiqueza deste prato.
Pois bem, lá está a menina deitada na toalha de praia colorida, com o seu corpito moreno e imaculado, de seios firmes e empinados para o sol, deixando escorrer gotas de bronzeador e transpiração pelo decote, enquanto deixa cozer os ovos naquela frigideira respingada de areia. A mãe está na água e o sol arde com força, deixando a piedade para outro dia e fazendo do bronze um trabalho verdadeiramente duro e monótono que só alguns são capazes de aguentar.
Cansada, a menina apoia-se nos antebraços agitando só ligeiramente os peitinhos muito rijos, fazendo subir o pescoço e rodando a cabecinha morena à procura da mãe. Há várias outras quiches pela praia, quase todas acompanhadas pelas suas mamãs, já não tão joviais.
Bem vistas as coisas, todas parecem ter mais ou menos os mesmos ingredientes: têm ovos, algumas vegetais, outras carnes e queijo, e mais uns ovos para não faltar consistência ao pitéu.
A chatice é quando falta sal. Ninguém gosta de gente desenxabida.
Tring! Entretanto, habemus quiche.
Marta Cruz
(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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