A “voz única” da artista Luísa Cunha, que ecoa num percurso de três décadas, em peças que transportam uma “dimensão política e social subtil”, pode ser escutada em Lisboa, na maior retrospetiva da sua obra, avança a Lusa.
Com curadoria de Isabel Carlos, esta primeira retrospetiva da obra da artista de 74 anos resulta da atribuição, em 2021, do Grande Prémio Fundação EDP Arte, e estará patente no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT).
“É uma voz única na arte contemporânea, e tem um universo muito particular, intrigante, com humor, e sobretudo uma componente política não óbvia”, descreveu a curadora à agência Lusa, na véspera da inauguração da exposição, que abrange vários espaços da Central Tejo, incluindo no exterior.
Com um arco temporal de 1992 a 2022, a exposição – intitulada “Hello! Are you there?” – junta todos os meios com que Luísa Cunha trabalhou: do som à fotografia, passando pelo vídeo, o desenho e a escultura.
“Eu chamo-lhe textos sonoros”, disse a artista à Lusa, num momento em que se finaliza a montagem de mais de uma centena de peças de 57 obras, muitas delas em que a sua voz se faz ouvir, como em “Hello”(1994), na qual se inspira o título da retrospetiva, e também “Ali vai o João” (1996), “BC” (1998), “Turn around” (2010), ou “1680 metros” (2020-2021) peça criada para a Bienal de Arte de São Paulo, no Brasil.
Também poderão ser vistos objetos, como “Tapete” (2007), apresentada numa exposição anterior, em Serralves, no Porto, e “Uns debaixo dos outros” (2017), ou de fotografia, como “Pas de deux” (2019), “Its all in your head” (2007) e “Spots” (2009).
“Não estão aqui todas as obras, foram só escolhidas aquelas que conseguiam relacionar-se umas com as outras”, comentou Luísa Cunha sobre as escolhas, acrescentando que, “se o espectador estiver atento, reparará nesta relação entre as obras que estão em cada espaço”.
“Primeiro encontra as coisas, depois procura-as”, poderá ser a frase que melhor define o processo de trabalho da artista, cuja obra tem sido descrita como singular pela crítica.
Depois de ter vencido o Grande Prémio Fundação EDP Arte, a artista foi também distinguida com o Prémio AICA 2022 (Associação Internacional de Críticos de Arte, secção portuguesa) para as artes visuais, anunciado este ano.
Questionada sobre o que lhe significam estas distinções, Luísa Cunha comentou: “Gosto muito. Mas eu tenho uma postura na vida que vê isto tudo como muito transitório, muito efémero. Eu alegro-me com as coisas quanto baste. Mas alegro-me. Vivo aquele momento, e agora já passou, são momentos. Agora são os outros que falam dos prémios. Já estou à frente, são passado”, disse.
“Eu não procuro nada, não quero nada, nunca quis nada, nem nunca quis ser artista. Não quero, vou sendo”, disse a artista que se licenciou em Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1972, e exerceu docência.
O seu percurso como artista começou mais tarde, aos 37 anos, durante o curso de escultura, em 1994, no Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, em Lisboa, onde depois também trabalhou como professora, até 1997.
“Não quero nada, nunca procurei nada. As coisas vêm ter comigo. Claro que estou atenta, não estou distraída. Mas eu não me mexo do mesmo lugar em relação a nada, nem a ninguém. Porque assim – e isto é muito importante para o meu equilíbrio emocional – eu consigo ter a medida exata do meu trabalho”, disse a artista.
A atenção ao mundo, por vezes traduzida numa dimensão política da obra de Luísa Cunha, segundo a curadora, é manifestada em obras como “Frydm!” (2011), um texto sonoro com um grito desesperado pela liberdade, ou em “Contadores” (2017), um conjunto de fotografias captadas em Abrantes, no distrito de Santarém, onde encontrou muitas casas desabitadas, e, prova disso, os espaços dos contadores da água ou luz esvaziados.
Sobre uma eventual postura ativista na sua obra, Luísa Cunha recusou: “Não, não há. Eu não sou ativista, embora tenha participado nalgumas manifestações aqui há tempos, sobre Timor, ou, quando Le Pen [candidato francês da extrema-direita] estava quase a ganhar eleições em França, também fui. Esse tipo de coisas que sei que tenho de estar lá. Mas eu não sou ativista. Isso é para outros. Há quem tenha essas características”.
“Mas estou muito atenta às coisas que acontecem no mundo. Não faço é obras politicamente óbvias. Tenho fotografias que mostram o despovoamento na cidade de Abrantes. A desertificação é um assunto falado desta maneira muito indireta”, nas obras.
Quando os acontecimentos lhe tocam especialmente, Luísa Cunha manifesta-os através da performance: “Tenho quatro performances, três delas são nitidamente políticas, nomeadamente “Mapa Mundi” (2018), relacionada com a ideia do ex-presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, de criar um muro. São obras muito simples, mas eu toco lá. Não faço discursos políticos mas, nas minhas obras sonoras tento exprimi-lo pelo corpo. É a única maneira”.
Luísa Cunha reivindica uma liberdade total sobre a sua obra, e diz que gosta de todas as obras que criou: “Já fiz obras que expus e que depois as destruí, porque vi que não eram suficientemente boas. Eu tenho muito este sentido da minha liberdade, da minha possibilidade de destruir obras”.
“No momento em que me vem uma ideia para uma obra, não tenho espectadores na frente, nada. Depois de concretizar, olho para o trabalho e penso se tenho de mudar algo. Sou a primeira crítica. Gosto de conversar sobre as reações das pessoas. Tudo isso me interessa”, admitiu.
Além disso, o seu processo de trabalho tem semelhanças com o quotidiano: “Não sou assim de muitas palavras. Tudo o que é supérfluo não me interessa. Varro tudo. Vou direta ao assunto. Tudo o que é cacofonias, mesmo na vida do dia-a-dia, aquilo que é demais. Roupa ou talheres a mais, não. Tenho essa noção muito presente. Não gosto de supérfluos”.
Para Isabel Carlos, esta ampla retrospetiva da artista revelará “um trabalho que muito provavelmente o público lhe associa menos, que é o vídeo, a fotografia e escultura”, e que dará uma imagem completa no MAAT.
“A sua grande imagem de marca são as esculturas sonoras, o trabalho com o som, com interpelações muito curtas, quase em ‘loop’ [repetição], muito coloquial, com frases retiradas do quotidiano, uma urgência de comunicação”, aponta a curadora.
Esta retrospetiva, segundo Isabel Carlos, vale a pena descobrir porque “ativa o expectador, e isso tem a ver com a dimensão performativa de toda a obra da artista, desde o início, em 1992, quando fez a sua primeira performance na ARCO”, em Madrid.
Luísa Cunha, por seu turno, indicou ainda à Lusa, que a sua obra mais recente irá para Serralves, que a convidou a criar uma peça para o novo edifício projetado pelo arquiteto Álvaro Siza, numa ampliação que terá uma ponte a ligar ao edifício antigo.
“A minha peça já está pronta. É uma peça sonora para o corredor [que irá ligar os dois espaços em Serralves]”, revelou.
Na inauguração da exposição “Hello! Are You There?” será também lançado o mais completo catálogo da obra de Luísa Cunha até à data, com mais de 280 páginas, abarcando um total de 108 obras em diálogo com uma seleção de excertos de textos de diversos autores, vindos a público entre 1997 e 2022, em diversas publicações.