“ Se começamos agora a desviar para o privado dinheiro do setor público, para áreas que estavam a ser garantidas só pelo setor público, é claro que isso vai criar problemas no futuro”, considerou André Biscaia, presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiares (USF-AN), defendendo que era preferível usar estas verbas para “acautelar o que já hoje é garantido pelos setores social e privado”.
Para o responsável, em vez de se estar a criar USF C ou outras Parcerias Público Privadas (PPP), o setor público poderia pagar melhor alguns exames já hoje feitos no privado, mas que o utente tem dificuldade em encontrar clínicas convencionadas para os realizar, como as ecografias.
“Eu trabalho numa zona perto de Lisboa e tenho dificuldade em ter uma ecografia abdominal, uma ecografia ginecológica, uma ecografia obstétrica. Então uma ecografia das partes moles é quase impossível”, exemplificou, acrescentando: “o que se devia fazer era utilizar esse dinheiro para remunerar melhor esses exames no convencionado”.
Desta forma – continuou – “fomentava-se áreas fundamentais em que o setor privado, virado para o lucro, tem um papel relevante”.
Outro dos exemplos apontados por André Biscaia é a reabilitação: “os tratamentos de fisioterapia também têm que ser mais bem remunerados, porque com o valor a que são pagos acaba por não se conseguir ter uma grande eficácia”.
Quanto ao setor social, poderia tratar das Estruturas Residenciais para Idosos, ou dos lares, “em vez de isso estar a pesar nas USF ou nos cuidados de saúde primários”, sugeriu.
“São muitos milhares de pessoas e podia ser uma área do setor social, que já tem aí uma grande implementação”, acrescentou.
André Biscaia insistiu que o conceito de USF C deve “ser mais clarificado”, alertando que estas unidades têm de obedecer às mesmas exigências legais feitas para as outras USF.
“É preciso esclarecer o que são as USF modelo C que se querem implementar e se cumprem os requisitos [definidos na lei] para serem USF. Senão, é só um uso abusivo do nome. Se forem cooperativas de médicos, ou entidades privadas, não são USF, são outra coisa qualquer”, afirmou.
Questionado pela Lusa sobre as USF C – o Governo anunciou que vai avançar com uma fase experimental que inclui 20 unidades -, o professor de Economia da Saúde na Escola Nacional de Saúde Pública Julian Perlman defendeu que, com a falta de concorrência em Portugal, ficará mais caro garantir o funcionamento destas unidades.
Lembrou que o setor privado “é dominado por três ou quatro grupos”, acrescentando: “o meu receio é que, depois, acabe por ser muito caro para o Estado, que (…) com os nossos impostos, em vez de estar a pagar os cuidados acaba por pagar pelos lucros destes grandes grupos”.
Outra das questões levantadas por Julian Perlman – tem trabalhado na avaliação da reforma dos cuidados de saúde primários centrada nos ganhos de economia, eficiência e eficácia resultantes da transformação de Unidades de Cuidados de Saúde Primários (UCSP) em USF – são os recursos humanos. Disse que para se conseguir médicos para estas unidades, indo buscar ao privado, teria de se pagar melhor, o que pode tornar as USF C atrativas para os profissionais das outras USF.
“O meu palpite é que vamos voltar a criar um sistema de duas velocidades: as USF C, com médicos muito bem pagos, melhores condições de trabalho e uma regulação mais apertada, e a USF tradicional, com piores condições e os médicos a quererem sair na mesma”, concluiu.
O investigador criticou esta dualidade, sublinhando: “durante anos falou-se da desigualdade nos centros de saúde, em função do sítio onde se vive (…). Isso foi resolvido pelo anterior governo, com a passagem de todas as unidades a USF B. E agora voltamos a criar desigualdade de acesso?”.
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Lusa/fim