Facas foi o primeiro livro que li de Valério Romão e, pelos vistos, já vou bastante atrasada.
Fui descobri-lo numa daquelas estantes de livros para partilhar que às vezes se encontram por aí, nos cafés, nos hotéis, nas livrarias… Desta vez, a estante não era bem uma estante, mas sim um cesto que encontrei num museu que frequento na vila de S. Brás de Alportel, no Algarve.
O seu rosto vermelho e o tamanho maneirinho brilharam no fundo do cesto de vime e reparei que, ironicamente, o exemplar já tinha alguns cortes e rabiscos na capa e contracapa — aquelas marcas de uso próprias da vida dos livros e, diria eu, da vida dos livros sobre objectos cortantes.
«Facas na solidão» é um conto sobre a invalidez, a depressão e o asco inerente ao adultério. Tudo realidades mais reais e dilacerantes do que as facas que usamos, diariamente, nas nossas cozinhas. Sobre elas pesam as variadas psicoses dos homens e o avançar lento das vidas tristes e solitárias. A elas, juntam-se todas as coisas atrozes que vivem escondidas atrás das nossas paredes — e que são a prova de que o mundo familiar pode ser tão violento quanto a guerra.
«Sete pequenos canivetes» é uma sucessão de sete pequenas histórias que de canivetes pouco ou nada têm, já que são capazes de cortar pedaços bem gordos dos leitores que as acompanham e deixá-los — como pingos de sangue — marcados pelas pequenas páginas deste livro de bolso.
Sim, este é um conto sobre sete grandes facas, eximiamente afiadas por um talhante e que — há que dizê-lo — sob uma oscilação muito intuitiva e, sobretudo, interativa, nos fazem chegar o medo que sentimos de nós mesmos (e das nossas próprias maldades)…
São artistas com facas, são talhantes com facas, são pais e são filhos com facas, são mulheres nas próprias facas, são entranhas nas facas! Há de tudo: lâminas homicidas e psicóticas, lâminas artísticas e bem resolvidas com a sua escultura, lâminas falantes, lâminas perdidas, suicidas e até libertadoras.
Portanto, cortes ao gosto do freguês. São facas bem amoladas que, numa verborreia de descrições muito esclarecidas, contam a história de pensamentos tão humanos quanto condenáveis.
Por fim, o conto «Faca seiseiseis» não nos deixa ir muito longe sem falarmos de livros, leituras, palavras e escrita, sobre fazer as coisas «assim, aos trambolhões, aos solavancos, numa trémula típica de doente crónico» que não sabe bem o que quer, mas que é artista ao ponto de se deixar levar pela sua loucura.
E, para vos deixar com água na boca, recordo apenas isto: «Hoje decidi encharcar-te em insónia. Porque o homem sem sono é mais vulnerável ao frio e à leitura. É à noite que se lêem os clássicos russos e os tratados teóricos de guerra, é de noite que os aforismos exercem a sua influência insuspeita. Folheias-me o corpo com legítima impaciência, devo-te um final, devo-te uma tirada gloriosa que te facilite a digestão» (p. 78, «Faca seiseiseis», Facas).
Convencidos? Não há como não deixar desconcertado mesmo o leitor mais pretensioso! E por isso, pensemos melhor antes de julgarmos um livro pelo seu tamanho — este é, de facto, afiado ao ponto de nos deixar entrar naquilo que o grotesco tem de mais bonito: a sua normalidade.
Diz-nos a editora que este é um livro que vive das «diversas declinações do objecto que empresta o título ao livro, ora sublimando-as num realismo tão mágico quanto grotesco, ora tornando-as as máscaras mais visíveis de uma natureza humana caleidoscópica».
Estou totalmente de acordo e posso apenas acrescentar, nas palavras de um dos narradores de Facas, que, para este livro, não há treino que nos valha para suportar o poder da palavra escrita. Nem sei como não me cortei logo quando o trouxe comigo de S. Brás.
Obra: Facas
Autor: Valério Romão
Editora: Companhia das Ilhas
1ª. edição, outubro de 2013
Lajes do Pico
Marta Cruz
(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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