Entrevista: «O Mieloma Múltiplo não tem cura, mas tem tratamento; doentes têm sobrevivências cada vez maiores», Guilherme Freitas, médico hematologista

O Mieloma Múltiplo (MM) é uma doença maligna de um tipo de células que existem na medula óssea, os plasmócitos, e faz parte de um grupo de doenças chamadas “neoplasias plasmocitárias”.

No âmbito do mês que lhe é dedicado, conversámos com Guilherme Freitas, médico especialista em Hematologia Clínica, sobre a doença: suas possíveis causas e possibilidade de tratamento. 

Sem cura, como assinalou o nosso interlocutor, o Mieloma Múltiplo apresenta hoje algumas possibilidades de tratamento. Sendo uma doença que atinge maioritariamente pessoas com mais de 60 ou 70 anos, a realidade é que pode atingir pessoas mais jovens. Como tal, importa estar atento e consultar o médico perante algum sintoma.

O que são as doenças chamadas “neoplasias plasmocitárias”?
Neoplasias plasmocitárias, ou discrasias plasmocitárias, são um grupo diverso de doenças caracterizadas por uma proliferação desproporcional de um único clone das células B que conduzem à produção excessiva de imunoglobulina. São exemplos a gamopatia monoclonal de significado indeterminado, Mieloma Múltiplo, entre outros.

Uma delas é o Mieloma Múltiplo. Exatamente em que consiste esta condição? É um cancro?
Mieloma Múltiplo (MM) é uma doença maligna de um tipo de células que existem na medula óssea, os plasmócitos.

No MM há uma transformação maligna que leva à proliferação desordenada de um grupo desses plasmócitos, formando o que se designa por “clone”, que produzirá um determinado tipo de imunoglobulinas em excesso (a proteína monoclonal ou proteína M, que está presente nos doentes com MM).

O que significa o fato de ser uma doença maligna?
Significa quando o Mieloma for sintomático, tem indicação para tratamento que envolve quimioterapia, imunoterapia e em certas circunstâncias transplante autologo de progenitores hematopoiéticos.

Como surge a doença? Qual a sua origem?
A doença apresenta-se após várias alterações adquiridas dos genes que controlam o desenvolvimento dos plasmócitos. A causa dessas alterações é desconhecida na maioria dos casos. Em alguns casos, raros, houve previamente uma exposição prolongada a certos produtos químicos, como solventes, benzeno, ou a elevadas doses de radiação.

Existe alguma forma de prevenir?
Atualmente não existe formas de prevenir o Mieloma, porém se se controlar os fatores de risco acima enunciados, pode diminuir o aparecimento.

Há algum género ou idade em que exista uma maior incidência?
A incidência é ligeiramente maior nos homens; é mais frequente a partir dos 60 anos, sendo a mediana de idade ao diagnóstico 69-70 anos, mas pode surgir em pessoas mais jovens.

Quais são os fatores de risco?
Geralmente a doença apresenta-se após várias alterações adquiridas dos genes que controlam o desenvolvimento dos plasmócitos. A causa dessas alterações é desconhecida na maioria dos casos.

Relativamente aos sintomas quais os principais a que é preciso estar atento?
Podem não existir sintomas e ser diagnosticado em análises de rotina que revelem alteração numa análise realizada no sangue: electroforese das proteínas. Quando der sintomas, manifesta-se por palidez e cansaço devido à anemia, dores ou fracturas ósseas e infecções frequentes. Pode também ser diagnosticado devido a insuficiência renal de novo. Nos casos em que o cálcio está elevado, pode causar sonolência, confusão mental ou alterações do comportamento.

A que especialista se deve dirigir a pessoa ao detetar algum destes sintomas?
Ao seu médico de família para orientar para um Hematologista ou diretamente a uma consulta de Hematologia.

Podem surgir complicações na decorrência da doença?
Sim. Pela própria doença em si com sintomas acima referidos como também como por efeitos secundários do tratamento direcionado Para o mieloma.

Como se obtém o diagnóstico de mieloma múltiplo?
Perante os sintomas sugestivos, ou por rotina, é necessário a realização de análises de sangue – hemograma, estudo da função renal, iões (incluindo cálcio) e electroforese das proteínas. Para confirmar o diagnóstico e necessário vários exames de sangue, urina, exames de imagem e um mielograma (estudo da medula óssea). Para caracterização das lesões ósseas podem ser pedidos diferentes exames, como radiografias, TAC, PET ou ressonância magnética.

O que mostram os testes sanguíneos e de medula óssea? De que forma esses resultados se comparam com o “normal”?
Numa análise de sangue – electroforese de proteínas – encontra-se um aumento de um determinado tipo de proteínas, as imunoglobulinas. Uma análise mais específica – imunoelectroforese – permite identificar qual a imunoglobulina em excesso – é o que se designa por gamapatia monoclonal.  Existem várias alterações analíticas que podem acontecer no Mieloma que vulgarmente se denominam por CRAB: C (Cálcio aumentado), R (alterações Renais), A (Anemia), B (lesões ósseas – Bone em inglês) O mielograma é um exame em que se aspira sangue do osso para observar a medula óssea – a fábrica do sangue – e que mostrará a infiltração por plasmócitos anormais.

Que tipo (ou tipos) de tratamento podem ser aplicados para tratar a doença?
O tratamento do mieloma é complexo e depende de vários fatores entre os quais a idade, estado geral, alterações citogenéticas e comorbilidades do doente. De uma forma global, os tratamentos incluem diferentes combinações de medicamentos:
– inibidores do proteossoma (bortezomib, carfilzomib, ixazomib)
– imunomoduladores (lenalidomida, pomalidomida, talidomida)
– anticorpos monoclonais (daratumumab, isatuximab, elotuzumab)
– corticóides (dexametasona, prednisolona)
– agentes alquilantes (ciclofosfamida, melfalano)
– transplante autologo de progenitores hematopoiéticos (não aplicável a todos os doentes)
– radioterapia

Quais os efeitos colaterais podem surgir com o tratamento?
Uma das consequências de vários tratamentos, nomeadamente de quimioterapia é a diminuição dos glóbulos brancos que pode levar ao aparecimento de infeções graves. Uma das infeções frequentes é a “zona” provocada pelo vírus herpes-zoster, que se manifesta por dor ou sensação de queimadura numa zona da pele, com aparecimento de pequenas vesículas e que requer tratamento imediato. A talidomida e o bortezomib estao mais ligados a neuropatia periférica (alterações da sensibilidade ou da força nos membros superiores ou inferiores), os imunomoduladores (como a lenalidomida e a talidomida) a eventos trombóticos e o uso continuado de anticorpos monoclonais aumenta a suscetibilidade a infeções.

A doença obriga o doente a alterar a sua rotina ou a evitar alguma atividade?
O tratamento e própria doença obriga a adotar medidas que diminuam o risco de ficar infetado, mas sem implicar mudanças drásticas na vida diária. É incentivado o exercício físico.

Quais as perspetivas após o tratamento?
O MM não tem cura, mas tem tratamentos. Devido aos novos fármacos, os doentes têm sobrevivências cada vez maiores. No entanto, é uma doença extremamente heterogénea.

De que forma deve o doente encara este prognóstico?
Como referido anteriormente, cada vez mais tem de encarar como uma doença crónica que varias opções de tratamento mesmo em doentes que não respondam à primeira linha de tratamento.

Deve procurar ajuda psicológica?
O MM é habitualmente uma doença que pode ter diferentes apresentações e complicações. Deve aconselhar-se com a equipa que o trata, pois existem formas de o ajudar a sentir-se melhor.

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