Sensações de flutuar fora do corpo, de se observar de cima como se fosse outra pessoa, de se tornar uma entidade etérea, feita de ar. Estas são algumas das descrições recolhidas por um novo estudo científico que tenta decifrar o enigmático fenómeno das chamadas Experiências Fora do Corpo (EFC).
Publicado recentemente na revista Personality and Individual Differences, o trabalho liderado pela neurocientista Mariana Weiler, da Universidade da Virgínia, aponta para uma associação significativa entre as EFC’s e problemas comuns de saúde mental, como a ansiedade, a depressão ou sintomas dissociativos. Além disso, sugere que estas experiências, muitas vezes mal compreendidas, até por profissionais de saúde, poderão servir como estratégia de coping subconsciente em pessoas com historial de trauma, especialmente na infância.
Uma sensação comum, mas pouco discutida
Apesar de parecer um fenómeno raro ou esotérico, as EFC’s são surpreendentemente comuns. Algumas estimativas indicam que entre 10 a 20% da população terá tido, pelo menos uma vez, a sensação de se encontrar fora do próprio corpo.
Segundo os autores do estudo, a experiência manifesta-se com enorme variabilidade. Em alguns casos, surge em momentos de calma, como durante meditação profunda ou relaxamento. Noutros, em contextos de extremo stress físico ou emocional, como acidentes, traumas ou emergências médicas.
As emoções associadas também variam: há quem relate uma sensação de paz e leveza absoluta, enquanto outros descrevem um medo intenso e a angústia de não conseguir regressar ao corpo.
Uma das descrições recolhidas ilustra bem esta ambivalência:
“Vejo-me como se estivesse num avião, a olhar para baixo, a uma distância de cerca de 1,5 metros. Sinto-me dividido e vejo-me lá em baixo. O meu corpo está lá em baixo, eu não estou no meu corpo, estou fora dele. […] A parte de mim que está por cima… parece-me estranha, parece um anjo, uma entidade. Vejo o corpo ali mas eu sou como ar”, afirma um dos participantes do estudo.
Do ponto de vista científico, várias hipóteses têm sido testadas. Há casos documentados de EFC’s induzidas em laboratório, através da estimulação elétrica de uma área cerebral específica: o giro angular direito, localizada no lobo parietal, responsável pela integração da perceção visual com a posição do corpo no espaço.
Esta área ajuda o cérebro a manter uma noção de “eu físico”. Quando é artificialmente perturbada, pode criar a sensação ilusória de descolamento corporal, como aconteceu num paciente operado ao cérebro na Suíça, que relatou EFC’s durante a cirurgia.
Mas estas simulações controladas não explicam a complexidade emocional e psicológica que envolve muitas EFC’s espontâneas. E foi precisamente isso que o novo estudo procurou explorar.
O que têm em comum as pessoas que vivem EFC’s?
A equipa de Mariana Weiler recrutou 545 adultos, de diferentes origens e perfis. Cerca de 23% dos participantes afirmaram ter vivido pelo menos uma EFC na vida. Desses, 80% relataram entre uma a quatro experiências; 20% indicaram cinco ou mais.
As EFC’s ocorreram em diversos contextos:
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74% de forma espontânea.
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9% associadas ao consumo de substâncias psicoativas.
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8,2% após meditação ou visualização guiada.
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0,7% durante hipnose.
A equipa encontrou padrões claros. Os indivíduos que tinham tido EFC’s apresentavam:
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Taxas mais altas de depressão e ansiedade.
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Níveis elevados de experiências dissociativas, medidas pela Escala DES-T (Dissociative Experiences Scale – Taxon).
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Historial de traumas infantis mais frequente.
Mais concretamente, 40% do grupo com EFC’s teve pontuações superiores a 20 na escala DES-T, o que indica dissociação moderada contra apenas 14% do grupo sem EFC’s.
Apesar de a correlação com a saúde mental ser significativa, Mariana Weiler recusa a ideia de que estas experiências sejam um sintoma patológico.
“Muitas pessoas acreditam que ter EFC’s significa que há algo de errado com elas, por isso evitam falar do assunto por medo de serem julgadas ou vistas como doentes mentais. Infelizmente, muitos profissionais de saúde mental ainda veem estas experiências da mesma forma”, lamenta a investigadora.
A conclusão da equipa aponta noutro sentido:
“Os nossos resultados sugerem que as EFC’s podem funcionar como um mecanismo subconsciente de adaptação a eventos traumáticos. Não são necessariamente um sinal de doença, mas sim uma forma de a mente lidar com experiências perturbadoras”.
Próximos passos: estudar o contexto
Para os investigadores, uma das prioridades será agora analisar mais a fundo o contexto em que surgem as EFC’s, já que a diversidade dos relatos é vasta: algumas surgem após meditação, outras com drogas, outras ainda em contextos clínicos ou religiosos.
“O contexto em que ocorre uma EFC – seja de forma espontânea, intencionalmente induzida ou facilitada por substâncias – provavelmente introduz uma grande variabilidade nos mecanismos neuronais e nas consequências psicológicas associadas”, conclui o estudo.
A investigação de Mariana Weiler convida a uma nova abordagem: menos julgamento e mais compreensão. As experiências fora do corpo continuam a fascinar cientistas e filósofos, e talvez nos obriguem a repensar os limites da consciência e da perceção.
O que parece claro é que, longe de serem meros delírios ou curiosidades espirituais, as EFC’s podem guardar valiosas pistas sobre a forma como o cérebro humano processa o trauma, o corpo e a própria identidade.