Rita Piçarra, ex-diretora financeira da Microsoft, reformou-se aos 44 anos, confessou numa entrevista em agosto de 2023. As suas palavras suscitaram inúmeras críticas, muitas das quais ignoraram o facto de Rita não se ter reformado na verdadeira aceção da palavra. Isto é, não passou a receber uma pensão de velhice da segurança social. Simplesmente, deixou de trabalhar. Para isso, planeou meticulosamente, desde os 20 e poucos anos, a carreira de forma a não depender do emprego para sobreviver, refere a DecoProrteste
Trabalhou intensamente nos primeiros anos, poupou e investiu o mais possível, com o objetivo de “ter uma vida além da carreira. Viver a vida”, algo que os pais não tiveram oportunidade de fazer por terem falecido quando tinham pouco mais de 50 anos.
A decisão da antiga responsável do departamento da Microsoft enquadra-se no chamado “FIRE movement” de Financial Independence, Retire Early (independência financeira, reformar-se cedo, em português).
Durante décadas, ouvia-se dizer: “Se trabalhar muito e poupar, poderá usufruir dos frutos do seu esforço quando se reformar aos sessenta e tal anos.” Nos dias de hoje, fará sentido? Há quem gostaria de retirar-se da vida ativa bem mais cedo do que a idade legal da reforma (66 anos e 4 meses, em 2023 e 2024), mas também há quem goste tanto do que faz, que dedicar-se ao ócio e deixar de ser “produtivo” está fora de questão.
O que é o “FIRE movement”?
Este movimento surgiu em 1992 na sequência do lançamento do livro “Your money or your life”, de Vicki Robin e Joe Dominguez, no qual colocam várias questões ao leitor, nomeadamente qual a relação que têm com o dinheiro, se o emprego atual reflete os seus valores, se têm economias para passar seis meses sem trabalhar.
Para atingirem a independência financeira, os autores sugerem nove passos. Não significa, necessariamente, ser rico, mas identificar o que é suficiente para cada um. Naturalmente, as perspetivas diferem de pessoa para pessoa. O importante, é gastar com propósito e intenção, em vez de consumir sem pensar.
Aqueles que põem em prática este movimento pretendem obter rendimentos suficientes para cobrir as suas despesas e viver com conforto sem terem de continuar a trabalhar para lá dos 55 anos. Por outras palavras, acumular riqueza para se reformar mais cedo, como fez Rita Piçarra aos 44 anos de idade.
Isso implica uma disciplina férrea de gastos, isto é, comprar apenas o que precisa e não tudo o que deseja, poupar o mais possível (de preferência entre 50 e 70% do rendimento) e, mais importante, aplicar bem as poupanças a longo prazo em produtos financeiros, que proporcionam uma rentabilidade interessante.
O tempo é o melhor aliado de qualquer investimento, bem como o efeito de capitalização, presente em alguns produtos.
Se apostar unicamente em produtos de capital garantido, não espere grande retorno. O risco está, inevitavelmente, associado a rentabilidades mais atrativas. Um fundo ou ETF de ações tem, portanto, mais potencial do que qualquer depósito a prazo, por mais alta que seja a taxa que este possa proporcionar. Até porque não há depósitos com prazos longos disponíveis no mercado.
Rita Piçarra, que ocupou cargos de responsabilidade na Microsoft em vários países, atingindo a “função de sonho da sua carreira” (diretora financeira, em Portugal), confirma, na entrevista ao Expresso, que atingiu o objetivo “tentando poupar o máximo de dinheiro, não gastando, mas investindo.”
Dividiu as suas poupanças em produtos de maior e menor risco, mas foi no imobiliário que destinou maior parte das suas economias. Criou uma empresa com o marido, na qual tem várias casas em alojamento local e de longa duração, que proporcionam uma fonte de receita suficiente para se “reformar” sem esperar pela pensão da Segurança Social.
Regra dos 25 e dos 4%
Quando dinheiro deve poupar para se reformar mais cedo? É uma pergunta pertinente. O FIRE movement sugere usar a regra dos 25, que consiste em determinar quanto vai precisar em cada ano da reforma e multiplicar esse valor por 25. Um exemplo: imagine que precisa de 50 mil euros por ano. Ao multiplicar este valor por 25, o resultado é 1250 mil euros, montante que terá de poupar para ter uma reforma confortável. Como esta regra foi projetada para 30 anos de reforma, terá de poupar mais ou menos consoante a idade em que pretende retirar-se da vida ativa.
O único problema da regra dos 25 é não ter em conta a inflação. O valor de 1250 mil euros pode parecer significativo, mas se a inflação for acima de 2%, como acontece atualmente, arrisca-se a que aquele valor não seja suficiente. Ou ainda se tiver um percalço ao longo da vida que exija gastar uma parte das poupanças.
Quem segue este “FIRE movement” utiliza também a regra dos 4%, para determinar o retorno da carteira de investimento ao longo dos tais 30 anos de reforma. Embora possa funcionar para alguns, para outros não é certamente suficiente, sobretudo se quiser reformar-se antes dos 50 anos.
Ter um fundo de emergência correspondente a seis meses de salário, para situações imprevistas, é outra das regras seguidas, bem como libertar-se das dívidas.
Ao longo dos anos, surgiram variações deste movimento. Neste momento, há o Lean FIRE, que consiste em viver uma vida frugal ao longo de toda a vida, antes e depois da reforma. O Barista FIRE, que preconiza economizar mais no início, para trabalhar menos no futuro. Ou seja, o objetivo não é reformar-se mais cedo, mas trabalhar em part-time ou a ritmo não tão exigente no futuro. Por sua vez, o Coast FIRE defende que invista o suficiente para que, mesmo sem contribuições adicionais, a sua carteira cresça q.b. para sustentar a sua reforma. Isto é, continua a trabalhar para cobrir as despesas atuais, reservando as poupanças para a reforma. Por último, o Fat FIRE envolve ganhar e poupar o máximo possível, para viver uma reforma desafogada.
Prós e contras do “FIRE movement”
Ao acumular dinheiro suficiente para se “reformar” mais cedo, pode largar o seu emprego das 9 às 17 horas, que nunca lhe encheu as medidas, e usufruir de mais tempo para si numa idade em que ainda tem energia e está apto para certas “aventuras”, como viagens mais longas e exigentes.
Contudo, por mais boa vontade que tenha em pôr em prática este movimento, se ganha, por exemplo, o salário mínimo, dificilmente conseguirá atingir os objetivos na idade que pretende. Ainda assim, não deve desistir. Quanto mais cedo começar a poupar e investir a longo prazo em produtos com risco, mais hipóteses terá de lá chegar.
Apesar de sonhar retirar-se mais cedo, pode concluir que, afinal, ter assim tanto tempo livre não é assim tão atrativo, preferindo manter-se a trabalhar.
Independentemente dos seus objetivos, ter um plano de reforma é desejável. Como temos vindo a escrever, o Ageing Report, da Comissão Europeia alerta para que, em 2050, as reformas em Portugal correspondam apenas a 50% do último salário.