(ler aqui parte I)
II
Durante as vindas da Cátia e do marido à casa da D. Amélia havia sempre discussão e, logo a seguir, espevita, vinha ela ao nosso andar contar a cena com a ambivalência que lhe era característica. Ora vítima dos comentários maldosas da filha, ora líder, expulsando o Richard da sua casa, corajosa: «Rauz!» (rua, no seu «alemão»).
Porém, nem só sobre tempestuosas personalidades se erguia o prédio. Havia, felizmente, a candura e doçura dos bolos da dona Maria João do segundo andar. Preocupada em não incomodar, a dona Maria João não ofertava nenhuma iguaria sem pedir desculpa: ora era o recipiente que não se adequava, ora eram os bolos que não tinham bom aspecto. Havia sempre afectação no discurso: «Trouxe-lhe uns bolinhos. Olhe para o que me havia de dar… olhe para isto, sem jeito».
Um dia, a D. Amélia e a D. Maria João conjugaram esforços para escrever, em quadras, uma letra personalizada e dedicada à minha família, que viriam a cantar no dias de reis, depois de alguns ensaios. Nunca julguei que dois temperamentos tão díspares se conjugassem tão bem, em uníssono.
Já das terras de Quixote, vinha alguém com a vaidade, a destreza, o salero e o sotaque espanhol: a dona Ermínia, de 80 anos, uma exímia conversadora: «Dona Issssabel comprou una bimbi?», perguntara ela um dia vendo a minha mãe com um electrodoméstico nas mãos.
Certa noite azeda caiu de forma espalhafatosa — ela dormia com uma touca (certamente ofertada pela sua filha que era enfermeira), num traje bastante risível. A minha mãe tinha ouvido gritos desde o sexto, acudindo-a de imediato, apesar de a dona Ermínia já gritar há umas boas horas. A partir desse dia a dona Ermínia ficou eternamente grata à minha mãe, dizendo sempre que por ela passava: «Gracias dona Issssabel».
Apesar desse incidente, no dia seguinte, a dona Ermínia era, de novo, e como sempre, a velhota mais composta da cidade. Ali a víamos, alternando entre o corpo espalmado, imóvel e queixoso com aquela mulher arranjada, repleta de base, blush, batôn e movimentando-se pelas ruas, num casaco de peles, acompanhada da filha, Tilinha.
Havia ainda o Feliciano, galã domingueiro que se pavoneava pela avenida onde ficava o nosso prédio. Tinha uma amante flagrante que escondia da mulher gorda e coxa — que deixava o carro durante muito tempo ligado na garagem, acumulando monóxido de carbono, enquanto passava os olhos por uns quantos papéis. Ainda para mais, a filha de ambos, Carlota, chefiara um gang que roubara o padre de Outeiro (uma aldeia das redondezas) mas, agora, inofensiva e sorridente, redimia-se vendendo bugigangas numa barraca, na feira medieval.
A vizinha do primeiro andar era a «Dorinha». Baixa, e extremamente magra, com uma anca larga e um queixo agudo, em forma de gancho. Acumulava dívidas de condomínio, com uma indiferença e uma simpatia que quase as faziam esquecer. Uma vez, ainda em pequena, ofereceu-me uma caneca original: a asa era o pescoço de uma girafa cujo padrão do corpo se estendia pelo resto da caneca. Dizia que me faria a colecção daquelas canecas… mas como as promessas de pagamento feitas ao condomínio não foi cumprida.
Depois, havia vizinhos que não conhecia tanto, afigurando-se modelações estéticas de um aspecto específico: a advogada que repetia constantemente a palavra «efectivamente», fazendo-me até hoje considerá-lo um termo dispensável, ou o senhor Ruivo. Rico, com vários carros, várias casas e muitos filhos, e um rosto e expressão que lembravam ligeiramente Jean Paul Sartre.
Erguido sobre fundações trágico-cómicas, dotado do protagonismo que a principal avenida da cidade lhe conferia, o meu prédio e os seus vizinhos eram tão memoráveis quanto a Humanidade.
Elsa Alves
(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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