“É o povo que conta a sua história com interpretações, e muitas vezes com reflexões. O povo, sim, faz essas reflexões, com personagens populares [em cena] como os trabalhadores”, disse à agência Lusa o encenador Nuno Miguel Henriques.
A peça “é uma lição viva do que é a nossa História, do ponto de vista artístico, com várias interpretações”, afirma o autor da peça. “Os atores desdobram-se em várias personagens que retratam essencialmente o povo, ou seja, este espetáculo é contado por muitas personagens populares, que falam dos capitães de Abril, mas temos desde aquele recruta que obrigatoriamente tinha de ir para a tropa, que não era o oficial, mas que faz parte, e o que ele via naquela altura e a esperança que se tinha na democracia e na liberdade, que tanta falta faz no dia-a-dia”.
São “personagens populares que contam de uma forma séria. Não é uma comédia, não é para rir. É [uma peça] para meditar, para pensar e para refletir”, sublinhou.
Licenciado em História e com experiência nas artes de palco, para fazer este texto Nuno Miguel Henriques, filho de um dos militares de Abril, contou também com a sua experiência e a vivência destes últimos 50 anos.
“Sou filho de um militar de Abril, e tenho o 25 de Abril marcado em toda a minha adolescência e enquanto criança, pois fomos assistindo a todos os movimentos que se faziam”, disse à Lusa.
Sobre o texto, disse que retrata a guerra colonial, os traumas, a emigração, tem a essência da ditadura do Estado Novo e o que se passava, na altura, a ala liberal do então partido único, a União Nacional, que, sob a liderança de Marcello Caetano, a partir de 1970, passou a designar-se Ação Nacional Popular.
No texto dramático há várias alusões a situações de época da ditadura, como as “Conversas em Família”, com as quais Caetano passava a mensagem do seu governo, mas há também “ao dia da Revolução”, a todos os movimentos dessa quinta-feira de Abril de 1974, “como o da rendição [de Caetano aos militares revolucionários], a libertação dos presos [políticos] do Forte de Caxias, passando depois pelos novos partidos políticos – estão todos representados, alguns já nem existem -, o dia das eleições, até ao lado contemporâneo do dia de hoje, dos acontecimentos”, enumerou Nuno Miguel Henriques.
“Há um retrato histórico-cultural, com uma ironia à mistura, mas com uma narrativa histórica”.
Ao longo de cerca de uma hora e meia que dura a peça, são utilizados vários registos sonoros históricos, “facilmente reconhecíveis”.
A peça “tem sempre um ponto de vista crítico e imparcial”, argumentou.
A peça “25 de Abril, Sempre!” é levada à cena pelo Teatro ABC-Companhia Nacional de Teatro, sem qualquer subsídio estatal, apenas com apoios pontuais das autarquias e “com a bilheteira de cada espetáculo”.
O elenco é constituído pelos atores João Saldanha, Nuno Duarte, Rafael Silva, João Bizarro e Nuno Miguel, além de Nuno Miguel Henriques, que tem a idade da Revolução dos Cravos e que faz um “prólogo sobre a história da Revolução”.
Ao longo da peça surgem referências aos movimentos antifascistas, a António de Oliveira Salazar, ao “general sem medo” Humberto Delgado, “ao Ultramar”, às revoltas estudantis à criação da televisão, às tentativas de golpes de Estado, à censura e ao seu “lápis azul”, à polícia política, a PIDE, mas também à poesia de Abril, ao 11 de março de 1975, ao 25 de novembro desse mesmo ano, ao Movimento das Forças Armadas (MFA), às crises, aos Governos provisórios e de iniciativa presidencial, e às eleições.
Nuno Miguel Henriques realçou que todos os atores encarnam personagens populares, como os ardinas ou cidadãos que colavam cartazes, após a Revolução, e nenhum dos “chamados heróis da Revolução”, como o capitão Salgueiro Maia, o então major Otelo Saraiva de Carvalho, Mário Soares, Vasco Gonçalves, Álvaro Cunhal, Vasco Lourenço, Melo Antunes, Sá Carneiro, Freitas do Amaral ou Costa Gomes, entre outros.
Cinquenta anos após o golpe militar que instaurou a democracia parlamentar em Portugal e pôs fim a um regime ditatorial, Nuno Miguel Henriques considera que “há ainda Abril por cumprir”.
“A democracia precisa de ser regada como um cravo, todos os dias, se ela não for regada como um cravo ela esmorece e, infelizmente, eu acho que a democracia tem muito para se cumprir”, disse.
“Fazer cumprir com a cultura”, disse, recordando o lápis azul da Censura, mas também “cumprir com uma cidadania ativa”.
“Hoje em dia, se nós meditarmos, a abstenção que existe, o desinteresse que existe, a emergência de novos movimentos, um tanto ou quanto pouco abonatórios para a democracia funcionar em pleno, [tudo isto] não é positivo para este Portugal que queremos para as gerações vindouras”, acrescentou.
Para o autor e encenador, “faz sentido” comemorar o cinquentenário de Abril, “mas não apenas para a festa, mas sim com a dignidade cultural que merece, e para deixar sementes”. E acrescentou: “É como a cultura, não pode ser só a cultura do entretenimento, tem de ser de intervenção, como na época do 25 de Abril, para as pessoas voltarem a meditar sobre si mesmas, a refletirem e a aprenderem”.
A partir de finais deste mês, até final de maio próximo, estão previstas mais de 60 representações em mais de 20 localidades de “25 de Abril, Sempre!”.
Na próxima quarta-feira a peça vai estar em cena em Valença e, no dia seguinte, em Canelas, no distrito do Porto. Abre o mês de março em Carregal do Sal, no distrito de Viseu, e terá passagem por Fajões, Abrantes, Charneca da Caparica, Covilhã, Almada, Marinha Grande, Sintra, Montemor-o-Velho, Seia, Coruche, Valongo, Guimarães, Alcácer do Sal, Braga, Boticas, Chaves, Lisboa, Porto e Santa Marta de Penaguião, em algumas localidades com mais do que uma representação.
No dia 24 de abril, sobe à cena em Loures e, no dia da Revolução, em Sátão, seguindo depois para Palmela, São Pedro do Sul, Vizela, Santiago do Cacém, Caldas da Rainha, Leiria, Amadora, Monserrate, Albufeira e Ponte de Sor.
A peça termina com a entoação do Hino Nacional, porque “celebrar Abril é celebrar Portugal, e nós temos de olhar para o que é nosso com olhos de orgulho, orgulho por estes militares de Abril. Não os podemos trair”, afirmou. Temos de ir “semeando o pensamento que eles queriam para estas gerações”.
“Celebrar Abril é celebrar Portugal”, rematou.
Lusa