O popular, o ridículo e o gracioso na dança clássica

No texto desta semana a equipa da Escrivaninha (serviços linguístico e de edição) convida os leitores da Forever Young a refletir sobre a arte do bailado.

É muito humildemente que escrevo estas linhas, como ex-estudante de ballet clássico. Não sou nenhuma teórica da dança, nem tenho a pretensão de ser, e tenho até muitas reservas quanto a essa figura.

 

Recordo-me até de ter lido, em tempos, um ensaio algo pastoso da autoria de um conhecido ‘teórico da dança’ que explorava a ideia de uma certa força criadora presente nela, com referências até — pasme-se — ao parto! Pareceu-me uma divagação pouco criteriosa sobre o assunto, um vago parlapiê — (como, de resto, o meu) mas de quem, ao contrário de mim, nunca se entregou a pliéstendusfondues ou adágios.

 

A verdade é que tecer considerações sobre uma arte que apesar de tão exigente fisicamente transparece sempre um halo de delicadeza, roçando o etéreo, é ingrato. Afinal, dificilmente essas considerações dirão justamente daquilo que na dança clássica se vê e sente.

 

Parece-me que, por mais bem escrito e fluído que seja um texto sobre dança (seja ele ensaístico, seja um poema de perfeita métrica) dificilmente competirá com esta que considero ser uma arte ‘não explicativa’, dispensando a paráfrase ou a explicação acessória.

 

O que quero dizer? Se, por exemplo, a literatura usa a linguagem para construir uma outra coisa — de modo a sugerir e criar um universo que está, parece-me, para lá dos seus próprios mecanismos de linguagem — a dança (sobretudo o ballet clássico) é ela mesmo uma linguagem, com a vantagem da universalidade que a caracteriza.

 

A par da dança, também a música se incluiria (e talvez mais unanimemente) nesse grupo de ‘artes não explicativas’ que me parecem mais directamente ter um tácito acordo com a emoção ou o sentimento e levar-nos mais facilmente àquele ponto de arrepio da pele — se não estivermos completamente embrutecidos e tivermos, ainda, alguma sensibilidade estética. Nesse caso, a dança ainda nos provocará qualquer coisa.

 

Admiraçãocomoção e embevecimento poderão ser algumas dessas nobres sensações e talvez sejam aquelas que mais experimentamos quando assistimos a um bailado. Mas, e quanto à vontade de rir? Será justificável e habitual senti-la? Para mim, sim. Isto porque reconheço um certo pendor popular e até ridículo nos bailados clássicos que é cómico e pode justificar a gargalhada indiscreta.

 

Vejamos apenas alguns dos elementos que considero populares ou ridículos e porquê.

 

  • mímica narrativa que conta a história de bailados tradicionais como o Lago dos Cisnes, Quebra-Nozes, ou Dom Quixote deve ser óbvia, declarada — assim manda o libreto. Ora, os “não” e “sim” dos bailarinos devem ser sobejamente exagerados para que às pessoas da última fila chegue, pelo menos, um esgar dessa expressão. É lógico e bem pensado — democrático, afinal todos pagaram bilhete — mas não deixa igualmente de levar ao ridículo, sobretudo se estivermos nas primeiras filas e virmos um pedido clemente, de mãos em oração, da parte do bailarino e a negação rasgada na boca da bailarina perante um pedido de casamento. Absolutamente teatral, tão óbvio que chega a ser pueril e a provocar o riso.

 

  • As preparações, isto é, os momentos em que os bailarinos colocam os braços numa posição preparatória de modo a — passo a redundância — preparar uma sequência de passos. Estas preparações têm também um quê de ridículo pelo seu exagero, assim como a posição final depois de uma sequência. É comum vermos bailarinas erguendo muitíssimo o queixo e, depois, terminando a sequência de movimentos esticando os dedos num movimento muito repentino e abrindo bem a boca, como se todo o corpo dissesse em voz alta um estridente “voilá”, “vejam bem como esta diagonal me saiu na perfeição”! Trata-se de uma assunção declarada e despudorada do virtuosismo — e na qual, pessoalmente, também encontro alguma piada.

 

  • jogo de braços em arco presente em certos bailados como La Sylphide. Este jogo de braços formado pelos bailarinos — sob os quais, por sua vez, passa uma série de outros bailarinos —lembra-me uma brincadeira de crianças; uma verdadeira confusão de corpos que, a bem da verdade, ou enfastia o público (ansioso pelas variações a solo), ou fá-lo rir.

 

  • As prolongadas poses dos bailarinos do corpo de baile que devem ser mantidas por longos minutos, acompanhadas de um sorriso permanente (e inverosímil, ninguém sorri durante tanto tempo) enquanto, mais uma vez, os solistas dançam a sua variação ou pas-de-deux. Se, em certos momentos, os bailarinos gesticulam e fingem falar, reproduzindo o comportamento humano, noutros estão absolutamente estáticos, servindo de cenário, como se por momentos a alma se aquietasse. Não há grande verosimilhança narrativa nisto. E, coitados, sempre é muito tempo em que estão quietos quando na verdade estudaram uma vida inteira para, em palco, se poderem ‘mexer’.

 

  • O facto de na coda — a parte final e apoteótica do bailado de estrutura tradicional — se esperar que, a determinada altura, a bailarina execute 32 ou 48 (um múltiplo de 8) fouettés — pirouettes que implicam um movimento da perna, que deve abrir ao lado — em linguagem técnica em en dehors —, antes de ser recolhida. É a quantidade que importa. Obviamente que esta é mais uma expressão do virtuosismo que não deixa de concentrar algo de popular: o objetivo de deixar a massa espectadora em êxtase! E há mesmo quem, durante essas pirouettes, bata palmas, pedindo mais, dando ritmo à música como se de uma festa popular se tratasse.

 

Todos estes aspetos mais cómicos, de cariz popular e/ou ridículo são muito bem identificados e explorados pelos Ballets Trockadero, a famosa companhia composta por homens — que dançam em pontas — e que satiriza, com arte, virtuosismo e inteligência, os mais variados bailados clássicos.

 

Por fim, quanto ao gracioso que incluí no título — por ser evidente e para me redimir — ele é óbvio e constatado por todos os que assistam a um clássico — e sugiro outros não tão conhecidos pelos mais leigos nestas matérias — como La Bayadère ou Manon. A graciosidade, expressividade e o domínio técnico de uma Aurélie Dupont (a minha bailarina de eleição) ‘desculpam qualquer coisinha’ ridícula ou popular desta arte tida como elitista e sobranceira.

 

Ainda assim, quando forem ver um bailado clássico tradicional, atentem no máximo possível. Poderão usufruir do espectáculo a um outro nível, passando por um mais amplo espectro de emoções e, eventualmente, rir sem culpa.

 

 

Elsa Alves

(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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