A saúde oral em Portugal é o “parente pobre” do SNS?

Antes e depois dos 50, a saúde oral deveria ser uma preocupação de todos, mas não é. Nesta entrevista, saiba por que deve dar mais atenção aos seus dentes e boca.

Não vai ao dentista há mais de um ano? Se a resposta a esta pergunta é “sim”, está mais do que na hora de marcar uma consulta. Desvalorizar a saúde oral é meio caminho andado para que se desenvolvam problemas dentários graves, que teriam tido uma resolução fácil se diagnosticados precocemente. Além disso, falar de saúde oral vai além das doenças dentárias, como se estas não fossem já razão suficiente para adotarmos medidas de prevenção. Uma visita regular ao dentista pode ser decisiva para o diagnóstico precoce do cancro oral, por exemplo, entre outras doenças graves.

Para fazer um diagnóstico à saúde oral dos portugueses, falámos com Afonso Pinhão Ferreira, médico dentista especialista em Ortodontia pela Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), professor catedrático da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto (FMDUP) e diretor clínico da Ortopóvoa.

 

Que diagnóstico faz da saúde oral dos portugueses?

Portugal é dos países europeus com menos população por dentista (cerca de um dentista para cada mil habitantes), o que está relacionado com o número exagerado de instituições de ensino superior públicas e privadas, que habilitam estes profissionais no nosso País. Havendo uma oferta significativa de profissionais da saúde oral, seria de esperar que a resposta fosse muito positiva, ou seja, que usufruíssemos de ampla e qualificada saúde oral. Porém, seguramente que a saúde oral dos portugueses, no quadro da União Europeia (UE), não figura no quadro de honra. O Barómetro da Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), dados do Eurobarómetro e alguns artigos publicados demonstram que 70% dos portugueses não usufruem de uma dentição completa, e que mais de 55% dos desdentados parciais ou totais não têm quaisquer dentes de substituição, ou seja, não possuem próteses. Além disso, perto de 1/3 da nossa população nunca consulta um dentista e, quando o faz, é em situação de urgência. Importa referir também que 41% não vão ao dentista há mais de um ano. A explicação multicausal para tal incongruência fundamenta- -se nas estatísticas conhecidas, que nos dizem que os portugueses não recorrem ao dentista por não sentirem necessidade (54%), o que demonstra défice educacional, ou por dificuldades financeiras (32%), o que não abona a favor das políticas sociais vigentes.

 

Que cuidados suplementares que devemos ter com a saúde oral a partir dos 50 anos?

O ser humano é uma admirável máquina que também se rege pelas leis da termodinâmica, reduzindo, ao longo da sua vivência, a energia livre, e aumentando a entropia. Quer isto dizer que vai sofrendo agressões e desgastes ao longo da funcionalidade a que a existência obriga. Ora, na cavidade oral e estruturas anexas, acontece o mesmo. No entanto, nesta área é mais notório esse desgaste, não fora o facto de a face e a boca serem os elementos mais visíveis do corpo humano.

O enrugamento da face, a secura das mucosas e o desgaste dos dentes trazem complicações que desqualificam a nossa vida, o que será bastante mais grave se não tivermos, ao longo da existência, cuidados de saúde rotineiros e apropriados, ou se não evitarmos o mau uso, como o hábito de substâncias de risco, nomeadamente o tabaco e o álcool, entre outras. A medicina dentária e áreas complementares podem ajudar a que os sinais e sintomas de envelhecimento e as “avarias”, que surgem por perda, desgaste ou uso indevido das estruturas orais, possam acontecer cada vez mais tarde, e sem a sintomatologia e as consequências nefastas para a saúde geral. Assim, a consulta semestral ao médico dentista revela-se fundamental, bem como a escovagem criteriosa de todos os dentes, próteses e língua depois do pequeno almoço, depois do almoço e antes de ir dormir; a utilização de elixires fluoretados e alguns desinfetantes, quando existir recomendação profissional; e, ainda, fazer uma inspeção visual cuidada diária, com bastante luz, do interior da cavidade oral, no sentido de averiguarmos a existência de qualquer alteração de cor ou volume, já que esta faixa etária é mais propensa a lesões suscetíveis de malignidade. Em caso de dúvida, é recomendada a consulta a um médico dentista.

 

Quais as principais patologias que acometem os portugueses nesta faixa etária?

Há patologias específicas da boca e estruturas circundantes que se acentuam com a idade e que interessa prevenir e diagnosticar precocemente. O desgaste dos dentes modifica os pontos de contacto das coroas e expõe as raízes, criando espaços que facilitam o acúmulo de placa bacteriana (saliva, bactérias e restos alimentares). Esta placa, não sendo removida sistematicamente pela escovagem, pelo fio dentário, ou pelo uso de escovilhão, acidifica. E os ácidos formados desmineralizam os tecidos duros dos dentes provocando a cárie, além de “queimarem” as gengivas, causando inflamação. Assim, nestas faixas etárias, em virtude do uso e devido às alterações da forma dos dentes e aos espaços criados entre eles, torna-se mais difícil remover a placa bacteriana.

Daí que, além da aconselhada melhoria técnica e frequência aumentada dos hábitos de higiene, se recomende a visita ao dentista mais repetidamente, para que o profissional ajude a evitar a cárie, o acúmulo de tártaro (calcificação da placa bacteriana que não conseguimos remover) e os danos nos tecidos de suporte dos dentes, que podem levar à mobilidade dentária e, mais tarde, à queda dos dentes (doença periodontal). Também nestas idades é mais acentuado o número de pessoas com falta de dentes (edentulismo), apesar de a perda de dentes devido a doenças orais não ser uma consequência inevitável do envelhecimento. A perda de dentes, sobretudo quando mais de seis unidades, causa problemas funcionais e emocionais. A prejudicada capacidade de mastigação leva a que os pacientes escolham certos alimentos e abandonem outros, levando a défices nutricionais que se refletem na saúde geral. Tendem a evitar os alimentos ricos em fibras, e dão preferência a nutrientes que favorecem o colesterol e a obesidade. A perda de dentes também produz efeitos nocivos na oclusão dentária, já que as forças mastigatórias que se transmitem aos dentes, habitualmente verticais, passam a ter vetores transversais, danificando os tecidos que seguram os dentes (periodonto).

Sempre que um paciente perde um dente deve agendar uma consulta médico-dentária para a sua substituição protética e para recuperar a funcionalidade e manter ou melhorar a estética. As próteses devem estar sempre bem adaptadas para não causarem lesões nas mucosas e consentirem numa ótima mastigação, caso contrário, valerá a pena reconsiderar substituí-las.

Por fim, nesta faixa etária, dado o uso da máquina e a contingência da existência, tomam-se mais medicamentos e usam-se mais próteses. Uns e outros podem conduzir a uma diminuição do fluxo salivar e aumentar a secura da boca, tornando as pessoas mais suscetíveis a certas doenças orais, tais como as micoses provocadas por fungos. Nestes casos, recomendamos igualmente que se solicite uma opinião ao profissional de saúde oral.

 

Quem tem acesso a cuidados de saúde oral hoje no Serviço Nacional de Saúde (SNS)?

Tradicionalmente, no nosso País, a medicina dentária é uma prática privada e a consulta de medicina dentária qualificada é forçosamente dispendiosa, dado o custo da tecnologia inerente à sua prática, dos consumíveis a utilizar e da formação especializada e continuada a que estão obrigados os médicos dentistas. Por essa razão, muitas pessoas e famílias, detentoras de menores rendimentos, evitam aceder a estes cuidados, o que coloca em causa o seu constitucional direito à saúde. Também por isso, e não só, os governantes sempre secundarizaram os cuidados de saúde oral relativamente às outras áreas de saúde, investindo muito pouco nesta área. Devo dizer que 90,3% dos portugueses não recorrem ao SNS para tratar os seus problemas de saúde oral. Há várias razões que explicam este dado estatístico. O SNS não disponibiliza este tipo de tratamento a todos os portugueses, é uma comparticipação assaz limitada e fá-lo há relativamente pouco tempo.

Além disso, só 63% da nossa população sabe que o SNS oferece serviços da área da medicina dentária, o que significa que falta uma informação mais cuidada e abrangente.

Apenas 9,7% dos portugueses recorre então ao SNS para tratamentos de saúde oral, sendo que 6% recorrem à urgência hospitalar e 3,8 ao Centro de Saúde. Importa referir que os nossos governantes, com a influência da OMD e a exemplo dos outros países europeus, implementaram em 2005 o Programa Nacional de Promoção de Saúde Oral (PNPSO) com o propósito de prevenir e tratar as doenças orais nos jovens e crianças juntamente com uma estratégia educativa correspondente. Em 2008, o PNPSO alargou o seu âmbito a grupos populacionais de particular vulnerabilidade, designadamente as grávidas e idosos carenciados. Depois, em 2010, passou a abranger os dentes infetados com VHI/SIDA e, em 2014, passou a preocupar-se também com os grupos considerados de risco ao cancro oral. Em 2015 e 2016 alargou o acesso a estes cuidados e formalizou a já tardia implementação de consultas de saúde oral nos cuidados de saúde primários.

Assim, respondendo mais concretamente à questão, de quem tem acesso a este tipo de cuidados no SNS, serão todos aqueles que referimos. Importa, contudo, sermos justos e dizer que paralelamente à constatação da insuficiência tardia destes auxílios governamentais, afirmarmos que há estudos que demonstram que, desde a introdução do PNPSO, os ganhos em saúde são assinaláveis, designadamente na população infantil. Os beneficiários do complemento solidário para idosos podem dirigir-se ao Centro de Saúde e solicitar, junto do médico de família, auxílio para conseguir uma consulta de medicina dentária, mediante a sua inclusão no Projeto de Saúde Oral para Pessoas Idosas, e ter assim acesso ao denominado cheque-dentista.

Os “cheques-dentista” são fornecidos no máximo de dois por ano, e dão acesso a um conjunto de cuidados de saúde oral essenciais para preparar a eventual aplicação de próteses dentárias, bem como para identificar e tratar outros problemas de saúde oral das pessoas idosas. A atribuição do primeiro “cheque- -dentista” será entregue ao utente na Unidade Funcional do Centro de Saúde onde está inscrito, com base em documento válido comprovativo da sua situação de beneficiário do Complemento Solidário para Idosos, emitido pelo Instituto da Segurança Social. O beneficiário pode depois dirigir-se a uma Clínica de Medicina Dentária que tenha aderido ao PNPSO, para a confeção, a readaptação ou para consertar as próteses. O médico dentista fica obrigado a passar uma cópia da receita médica da prótese, a fatura discriminada da despesa e o recibo de pagamento. Estes documentos deverão ser entregues no Centro de Saúde, que verificará a documentação, sendo depois o pagamento efetivado pelo Instituto da Segurança Social, o qual se traduz numa comparticipação até 75% da despesa (no limite máximo de 250 euros cada três anos). Há espaço para melhorar nesta questão? A saúde oral em Portugal é o parente pobre do SNS, já que se mostra como uma das áreas da saúde com menor cobertura por parte dos serviços sociais públicos. No nosso País, tradicionalmente, a prestação deste tipo de cuidados é feita pelo setor privado, implicando um financiamento direto por parte da população. Subsiste, portanto, uma lacuna no que respeita ao acesso a este tipo de cuidados pelos menos afortunados financeiramente.

O plano do SNS não tem tido o sucesso merecido pela sociedade evoluída de Portugal (o 14.º país em tamanho dos 27 países que constituem a UE), uma vez que não tem uma estratégia eficaz que englobe toda a população, em termos de oferta de serviços públicos e de condições de acesso equitativas. É evidente que demos os primeiros passos para que a saúde oral venha a ser um justo contemplado do SNS, mas estamos muito longe de atingir as metas dos países com quem partilhamos os ideais europeus. Tem de haver vontade política e planeamento.

Há algum tempo, tive acesso a um estudo muito interessante sobre este assunto, da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, intitulado “Impacto da Introdução de Um Sistema de Saúde Oral no Serviço Nacional de Saúde/2016”, da investigadora Tânia Soares de Pinho, que se baseou num estudo comparativo com outros países europeus e que tira conclusões muito aliciantes, demonstrando que seriam necessários uns módicos 542 milhões de euros para implementar um sistema de saúde oral no SNS português, o que, a ser verificável, permite pensar na sua exequibilidade. O Governo devia encomendar mais estudos de peritos em saúde e economia, analisá- los, e, de uma vez por todas, delinear uma estratégia com esse fim, e, depois dar-lhe corda. Os portugueses bem o merecem.

 

 

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