Os romances históricos são, para muita gente, o cabo dos trabalhos. Mas, para tantos outros, são também a melhor forma de aprender um pouco mais sobre História sem abandonar o prazer da ficção.
Eu, como não me situo necessariamente em nenhum destes conjuntos e, por isso, represento todos os restantes que se recusam a ser encaixados em categorias, hoje falo-vos de um livro que acabo de ler e que me acompanhou durante longas mas divertidas noites sem sono: Baudolino, de Umberto Eco.
Quem conhece a obra de Eco sabe bem que a Idade Média, a constante presença da semiótica, o jogo de enganos e a postulação de teorias sobre o mundo escondidas em casa frase são, sem sombra de dúvida, elementos sem os quais não nos sentamos à poltrona com os seus livros no regaço.
Assim, mesmo sendo Baudolino um romance histórico, peço já ao meu leitor que não se deixe enganar: neste gordíssimo volume não faltam intrigas e jogos de cintura trabalhados de forma a que viremos uma página atrás da outra, sem hesitação e com vontade.
E para que estejamos todos bem situados, esclareçamos desde já que o que faz deste romance «histórico» é, pura e simplesmente, o seu cenário. A história contada em Baudolino decorre entre os anos 1152 e 1204, numa altura em que a Europa era governada por Frederico I, o Sacro Imperador Romano-Germânico a quem chamavam Frederico Barbarossa, Frederico Barbarroxa ou Frederico Barba Ruiva (e sobre esta variação não me atrevo a historiar).
Baudolino, a nossa fantasiosa personagem – que eu imagino baixa e magrinha, à maneira daqueles que são, por natureza, ágeis –, é um camponês pobrezinho que teve três sortes na vida:
1. ter sido adoptado por Frederico Barbarroxa, o que dá sempre jeito quando nas nossas terras pequenas a oportunidade é pouca (e sim, esta é a narrativa mais antiga do mundo);
2. ser um ás em línguas, o que dá sempre jeito quando somos faladores natos e, como eu, não estamos para que o mundo nos passe ao lado só porque não perguntámos o caminho a um desconhecido;
3. ser um mentiroso de primeira, que dá sempre jeito quando nos vemos enrascados e quando não nos queremos preocupar demasiado com o sentido que nos toma a vida.
Em Baudolino, este camponês poliglota, filho adoptivo de um imperador e com uma queda para as fantasias, conta a sua história (que aliás começa o livro escrevendo) ao bizantino Nicetas Choniates – uma saga que vai desde a coroação do imperador à invasão de Constantinopla pelos cruzados e cujo fio condutor é a eterna busca pelo lendário reino do Preste João.
Óptimo resumo, claro. Mas deixa de fora o mais engraçado: Nicetas é historiador e Baudolino é mentiroso; o segundo narra (e inventa), o primeiro ouve (e tenta discernir o que pode ser, de facto, verdade). E nós, leitores, vamos andando ao sabor da narrativa e nadamos em invenções redondas e desenhadas para que não nos apercebamos da sua inexatidão.
Mas o que dizer de uma personagem que se sabe mentirosa e que francamente se agarra às suas mais inacreditáveis ficções? Certamente nada melhor que ela própria nos diz:
«– Ou seja – hesitou Niceta –, decidiste mudar de vida…
– Não, senhor Niceta. Decidi que se era aquela a minha sorte, era inútil tentar tornar-me como os outros. Estava já consagrado à mentira. É difícil explicar o que me estava a passar pela cabeça. Dizia: enquanto inventavas, inventavas coisas que não eram verdade, mas passaram a sê-lo. Fizeste aparecer São Baudolino, criaste um biblioteca em São Vítor, fizeste os Magos correrem mundo, salvaste a tua cidade engordando uma vaca magra, se há doutores em Bolonha é também por mérito teu, fizeste aparecer em Roma maravilhas que os romanos nem sonhavam, partindo de uma aldrabice daquele Hugo de Gabala criaste um reino que não há outro mais belo, até que amaste um fantasma, e fazia-lo escrever cartas que ele nunca escreveu, os que as liam deliciavam-se todos, inclusivamente a que nunca as escrevera, e basta dizer que era uma imperatriz. E afinal na única vez que quiseste fazer uma coisa verdadeira, com uma mulher que outra mais sincera não pode haver, falhaste: produziste algo que ninguém pode acreditar e desejar que exista. Portanto é melhor que te retires para o mundo dos teus portentos, que nesse pelo menos podes decidir até que ponto serão, precisamente, portentosos.» (Eco 2016:241).
O que Eco faz neste romance – provavelmente uma das suas obras mais divertidas – é recriar uma História ficcional produzida pelo tempo e pelo imaginário colectivo, fazendo com que Baudolino se torne o cúmplice imediato de todos os mitos fundadores do mundo. E esses mitos, que moldaram a nossa cultura, tornam-se, de repente, tão dele quanto nossos.
Baudolino
Umberto Eco
Gradiva
Novembro de 2016
Lisboa
Marta Cruz
(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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