Antes de mais, convém referir que a qualidade literária de António Ferro (1895 – 1956) parece abafada pela sua actividade jornalística e política. De facto, em 1932-33 — depois de já em 1929 parecer ter dado por concluída a sua carreira literária —, Ferro embrenha-se cada vez mais no regime salazarista, entrevistando Salazar por diversas vezes e ajudando a promover a sua imagem enquanto ditador (Barreto, 2011: 140).
É precisamente esta a faceta que a maioria dos textos que se escreveram sobre António Ferro contempla, sendo esporádicos os ensaios dedicados ao estudo da obra literária do autor — que aliás parece ter-se afirmado mais pelo contributo para a divulgação de um certo gosto moderno (Martins ed, 2008: 277).
Para contrariar essa tendência, hoje colocamos de lado as inclinações políticas de Ferro e, sem mais delongas, falamos de uma obra breve e depurada, que vale a pena ler: Leviana (cuja primeira edição data de 1921).
Leviana é, de certa forma, herdeira paródica da tradição oitocentista. O leitor mais atento aperceber-se-á de que o próprio título anuncia uma obra cuja estrutura nada tem que ver com o romance de matriz realista, sendo, aliás, sarcástica em relação à burguesia que protagonizava esses mesmos romances e afirmando-se como uma novela moderna que opta por sugerir e elidir criteriosamente a informação que o leitor deve completar. Espécie de diário narrado pelo cavalheiro que temporariamente conquistou a mulher-protagonista de que se fala — de seu nome Leviana — o texto é esparso, organizado por fragmentos de supostas cartas, diálogos entre ambos etc…
Ora, este carácter fragmentário do discurso que percorre os vários capítulos, bem como os vários registos linguísticos presentes parecem servir precisamente a exploração das várias facetas desta mulher difícil de descrever, paradoxal, caótica — características que a própria obra mimetizará: «Esse livro será tumultuoso como essa garota, a gaveta da saudade, aberta, bruscamente, na minha inteligência.» (p. 4).
Seguindo uma série de cenas citadinas, peripécias, frases soltas e diálogos entre narrador e personagem, a Leviana assume-se a cada página como ambígua, ou mesmo paradoxal, o que nos pode levar a concluir que se afigura uma espécie de mulher total ou, por outro lado, uma entidade representativa de uma grande diversidade de mulheres. Aliás, o adjectivo nominalizado «Leviana» dá lugar a uma multiplicidade de nomes próprios in absentia.
Dotada de uma beleza abstracta: «dois gatos assanhados» (p. 9) no lugar dos olhos, «o nariz um palhaço a gritar» (p. 9), a boca um «baile de máscaras» (p. 10), e com uma alma volátil: «eu mudo de alma como quem muda de camisa» (p. 19). É, pois, difícil saber definir, em concreto, esta Leviana capaz de proferir tanto frases da mais perfeita banalidade quanto aforismos metafísicos; ora coloquial e leve, ora poeticamente provocadora.
São precisamente alguns dos aforismos e/ou gregarias de Leviana — claramente influenciados por Ramón Gómez de La Serna (citado, aliás, noutros textos de Ferro) — que vêm confirmar as múltiplas personalidades que esta figura feminina condensa: «Deves ter muito que dizer: estás tão calado…» (p. 18); «Não estamos no teatro, estamos no cinema: não há lever–de–rideau» (p. 51); «Os beijos são as migalhas da carne.» (p. 35).
Numa clara assunção da influência que o apogeu do cinema e a influência do Modernismo de Orpheu tiveram em Ferro e, em particular, na composição da figura de Leviana, os espaços sucedem-se em catadupa. Movimentamo-nos, com Leviana, pelos salões de chá, cinemas, confeitarias, modistas, entre outros espaços: «numa casa de chá (p. 60)», «na Avenida da Liberdade» (p. 61), «no atelier dum fotógrafo» (p. 61), «no cinema» (p. 62).
Vagueando pela cidade e só pertencendo a ela mesma, a Leviana não gostava de se sentir presa, nem sequer numa estrofe. Por isso, indignada, perguntava quando desconfiava estar retratada num texto do seu namorado poeta: «Li hoje um soneto teu, aquilo era comigo?» (p. 70)
Leviana é livre, múltipla e tão intrigante quanto um bom livro. Merece, sem dúvida, uma leitura atenta e paulatina: «A minha carne é um livro palpitante. Prolonga o prazer da leitura. Não te precipites: lê-o devagar…» (p. 34).
Obra: Leviana
Autor: António Ferro
Editora: Contexto Editora
Ano: 1996
Elsa Alves
(texto escrito de acordo com a antiga ortografia)
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